Redação (18/07/06)- Se for confirmada, a compra da Perdigão pela Sadia será um dos grandes desafios da história do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Responsável pelo julgamento de fusões e aquisições no Brasil, o órgão antitruste terá, à sua frente, altas concentrações de mercado. Juntas, Sadia e Perdigão possuem 64,5% do mercado brasileiro de presunto, 60% das pizzas congeladas, 92,4% das tortas congeladas salgadas e 91% dos pratos prontos em geral.
Apesar dessas altas concentrações em vários mercados, há chances para a aprovação da fusão pelo Cade. A Sadia convive com uma forte disputa com as grandes redes de supermercados, explicou ao Valor o ex-conselheiro do Cade, o economista Ruy Santacruz. Os supermercados possuem marcas próprias de vários produtos que concorrem diretamente com a Sadia, como pizzas e tortas congeladas. “A rede varejista tem poder de barganha muito forte”, afirmou Santacruz, o único a votar contra a fusão Brahma-Antarctica, que autorizou a criação da Ambev, em 2000.
Esse poder de barganha dos supermercados é tão forte, continuou o ex-conselheiro, que, numa queda de braço entre o Pão de Açúcar e a Nestlé, a empresa teve que voltar atrás de sua decisão de não vender seus produtos por aquela rede de supermercados. Após a desvalorização do Real, em 1999, lembrou Santacruz, a multinacional suíça Nestlé quis repassar aumentos de seus custos às grandes redes do varejo. O Pão de Açúcar não aceitou e ficou sem os produtos da empresa. Após alguns meses fora do Pão de Açúcar, a Nestlé perdeu vendas e decidiu renegociar para voltar às prateleiras daquela cadeia.
“A rede varejista desafiaria um eventual aumento de preços de uma Sadia-Perdigão”, concluiu Santacruz. “Em vários produtos, a Sadia e a Perdigão já enfrentam a concorrência de marcas próprias do Pão de Açúcar, do Carrefour e de outras redes”.
Outro argumento favorável à fusão: não existem grandes obstáculos para outras empresas disputarem os mercados da Sadia. “A pequena empresa familiar de fundo de mercado abastece lojas de conveniência e vende mais barato do que as grandes redes”, disse Santacruz.
O desafio seria verificar se essas pequenas empresas realmente podem rivalizar com os produtos Sadia e Perdigão no mercado. “O consumidor estaria disposto a comprar marcas próprias ou pratos prontos de empresas pequenas caso a Sadia aumente os preços? Quanto representa essa produção caseira no mercado nacional?” Essas seriam perguntas essenciais para o Cade.
Nos últimos anos, o órgão antitruste aprovou várias aquisições feitas pela Sadia e pela Perdigão. Entre 1997 e 2001, a Sadia fez cinco grandes aquisições e a Perdigão, duas. O Cade examinou todos esses processos e considerou que havia competição, principalmente entre a Sadia e a Perdigão. Daí, o conselho não viu motivos para barrar as aquisições feitas em separado pelas empresas. Um exemplo: a Sadia comprou a Só Frango – uma das maiores empresas do setor na região Centro-Oeste – e o Cade aprovou sem restrições, alegando que havia competição com a Perdigão. E agora, com as duas empresas juntas?
Relator da compra da Só Frango pela Sadia, o ex-conselheiro Roberto Pfeiffer acredita que a maneira pela qual o Cade separar os mercados em que ambas as empresas atuam será fundamental para o julgamento. Por exemplo, se o Cade contabilizar toda a produção de frango num mesmo mercado, a concentração será alta. Mas, se o Cade dividir em tipos, separando, por exemplo, o frango “in natura” dos frangos congelados e dos industrializados, poderá haver uma diminuição na concentração de mercado e aí a tendência à aprovação aumenta.
Pfeiffer acredita que a argumentação de que as empresas estão se unindo para fortalecer as exportações brasileiras não deve ser levada em consideração pelo Cade. O órgão antitruste chegou a aprovar, em 2002, a criação de uma trading entre a Sadia e a Perdigão – exclusivamente para exportação. Mas, naquele julgamento, o Cade fez uma ressalva: a trading deveria ser independente no Brasil para manter as companhias competindo entre si no mercado doméstico.
A Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda – órgão que fará o primeiro parecer sobre a eventual fusão Sadia-Perdigão – recomendou, na ocasião, que a área comercial da trading fosse dirigida por um executivo sem vínculos com ambas as empresas. O objetivo era manter a independência entre elas no Brasil.
“O Cade deve olhar para o mercado interno, para os impactos da fusão sobre o consumidor brasileiro”, comentou Pfeiffer.
O julgamento da fusão deverá ser tão importante para o Cade atual, presidido pela economista Elizabeth Farina, como foi a Ambev para a gestão Gesner Oliveira (1996-2000) e o caso Nestlé-Garoto para a gestão João Grandino Rodas (2000-04).
A diferença é que, naquelas fusões, não estavam em jogo alimentos essenciais, como carne e frango, mas complementos à cesta de produtos da classe média, como chocolate e cerveja.
Pfeiffer, um dos conselheiros que votou contra o processo de compra da Garoto pela Nestlé, afirmou que é essencial verificar se os produtos das empresas que estão sob processo de fusão podem ser substituídos por outros, das concorrentes. Por exemplo: o consumidor deixaria de comprar “nuggets” de frango industrializado da Sadia por “dedinhos” de frangos “in natura” de uma empresa menor? Ou: a pizza industrializada compete com a artesanal? “O Cade terá de testar se os produtos são substituíveis. O julgamento será traçado a partir daí”, procurou enfatizar o ex-conselheiro.
Juliano Basile
“Pílula envenenada” não foi problema para o desenho da proposta
No estatuto, está previsto que qualquer acionista que adquirir uma participação superior a 20% do capital da companhia terá de realizar uma oferta para todos os demais acionistas. Se a opção do valor da oferta for a média da cotação dos últimos 30 dias, haverá um prêmio de 35%. É a chamada “poison pill” (pílula envenenada), uma forma de tornar a empresa menos atraente a uma tomada hostil de controle.
O estatuto da Perdigão prevê ainda que, nessa oferta a todos os acionistas, se a empresa conseguir adquirir 50% mais uma ação, poderá fazer uma reestruturação societária, incorporando as demais ações e fechando o capital da Perdigão. É exatamente essa a intenção da Sadia.
Segundo o Valor apurou, o banco Real ABN Amro, que estruturou a operação para a Sadia, avaliou que a aquisição de uma participação relevante, seguida de uma oferta a todos os acionistas e de uma reestruturação acionária, acabaria inflando o valor final da operação. O preço pago em cada etapa serviria de parâmetro para a seguinte. A solução foi sair de cara com uma oferta a 100% dos acionistas, que já prevê a reestruturação societária ao final.
“Foi o pulo do gato do ABN. Mas pode ser que haja questionamentos jurídicos”, afirmou o executivo de um banco de investimentos concorrente. Outro ressaltou que a estrutura é simples e que o mais surpreendente foi a decisão da Sadia de fazer a operação. “Vários bancos já haviam levado a proposta de uma oferta hostil. Eles tinham relutância a isso”, explicou o executivo.
Pesou na decisão da Sadia, segundo o Valor apurou, o fato de o ABN ter apresentado uma operação completa, que incluía um empréstimo ponte de até R$ 4 bilhões para a aquisição. O desenho foi feito por Luciana Hall, da área de fusões e aquisições do ABN, e por João Teixeira e chancelado pelo presidente da instituição no Brasil, Fábio Barbosa, que levou a proposta à matriz antes de apresentá-la à Sadia. É um dos maiores créditos concedidos pelo banco ABN no mundo a um único cliente. Pelo valor da oferta, a aquisição de 100% das ações da Perdigão custaria R$ 3,77 bilhões.
O financiamento tem prazo de dois anos, que serve como garantia da operação e afasta os riscos financeiros. Mas o objetivo é refinanciar a dívida e alongar o prazo para cerca de sete a oito anos, com instrumentos como debêntures ou bônus perpétuos. A Sadia tem caixa de R$ 2 bilhões e prevê utilizar R$ 800 milhões na oferta, permanecendo ainda bastante capitalizada.
Na área jurídica, a oferta hostil foi desenhada por dois escritórios de advocacia: o Tozzini Freire, Teixeira e Silva Advogados e o Souza, Cescon Avedissian, Barrieu e Flesch.
Raquel Balarin e Vanessa Adachi
Ações disparam na Bovespa após primeira oferta hostil do mercado
A Sadia tem dado à oferta de aquisição da Perdigão um tom de cordialidade. Em comunicado divulgado ontem, a empresa diz que o objetivo da operação é “a criação de uma parceria histórica entre duas tradicionais companhias brasileiras”. Walter Fontana, presidente do conselho de administração da Sadia, foi inclusive à casa de Nildemar Secches, presidente da Perdigão, informá-lo pessoalmente da oferta. No edital de oferta pública, entretanto, ficou claro ontem que, caso essa operação se concretize, a Perdigão se tornará uma subsidiária da Sadia.
Para especialistas em mercados de capitais, o nome para esse tipo de transação é oferta hostil, sem que isso tenha qualquer sentido negativo ou positivo. “Qualquer oferta de compra em bolsa que não tenha passado pela aceitação da empresa a ser adquirida é tida como hostil. É um jargão”, afirma Laércio Pellegrino, advogado do escritório Veirano.
O nome formal, entretanto, é outro, segundo as regras brasileiras. De acordo com a instrução 361 de 2002 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), essa operação é chamada de oferta pública de aquisição de ações voluntária.
No Brasil, o caso dos frigoríficos é pioneiro. Isso porque só pode haver uma aquisição hostil, ou voluntária, em ambientes com empresas de controle difuso, sem controlador. Do contrário, qualquer proposta tem de antes passar pelo crivo dos acionistas controladores.
A primeira pulverização no Brasil só ocorreu em meados do ano passado, com a Lojas Renner. De lá para cá, a Diagnósticos da América, o Submarino, a Embraer e a própria Perdigão aderiram ao formato. Em fevereiro, o frigorífico anunciou que transformaria todas as suas ações em ordinárias, processo que o levaria ao Novo Mercado e deixaria seu capital disperso.
Agora, a oferta da Sadia vem no sentido contrário. “É uma ducha de água fria em um mercado que estava florescendo. Será uma empresa a menos no Novo Mercado”, diz Alexandre di Miceli, chefe de pesquisa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
Mas isso não significa, de acordo com Miceli, que a proposta seja ruim ou não. “O investidor deve avaliar se o valor que ele receberá será maior do que aquele que se projeta para a empresa.” Também pode pesar na avaliação o fato de, em uma reestruturação societária, o acionista passar a deter ações da Sadia. “A estrutura societária dela, com papéis preferenciais e ordinárias, é pior”, afirma.
Em toda a América Latina, são raros os casos de oferta hostil. Na Venezuela, a CanTV recebeu uma oferta de US$ 1,5 bilhão da AES em 2002, que incluía um prêmio de 9%. A empresa contratou o banco de investimentos Goldman Sachs para assessorá-la e a estratégia foi a de a própria CanTV oferecer um prêmio de 25% para os donos dos 19% do capital que estava pulverizado no mercado. A AES acabou desistindo da oferta. Agora, a CanTV está às voltas com uma nova oferta hostil, desta vez da Telmex, do megainvestidor mexicano Carlos Slim. Contratado novamente, o Goldman Sachs prepara uma nova estratégia de defesa.
As ações da Perdigão e da Sadia lideraram as altas na Bovespa ontem, num dia de queda de 1,37% do Índice Bovespa. A ação ON da Perdigão subiu 17,60%, a maior alta do Ibovespa no dia, para R$ 27,05, ajustando-se ao preço de compra oferecido pela Sadia, de R$ 27,00. Já Sadia PN teve a segunda maior alta, de 8,77%, para R$ 6,20. A reação dos analistas foi positiva. Mas chamou a atenção o fato de que o preço oferecido pela Sadia pode estar abaixo do justo, uma vez que a oferta tem por base a média dos papéis nos últimos 30 dias e o mercado acionário está em baixa desde maio. O setor de carnes também passou por problemas.
A alta das ações da Sadia e da Perdigão pouco antes do anúncio também chamou a atenção. A ação ON da Perdigão subiu 13,02% nos sete dias antes do anúncio, dos quais 5,02% só na sexta-feira passada. Já a ação preferencial (PN, sem direito a voto) da Sadia subiu 8,16% em sete dias, 1,24% na sexta-feira. Esse movimento foi na contramão do mercado, já que o Ibovespa caiu. Procurada, a CVM informou que, até ontem, não havia indícios que justificassem a abertura de investigação.