Redação (28/03/2008)- O que significam, para a Europa, as exportações de carne brasileira? E para o Brasil? O que queremos como produtores de carne? Estas duas perguntas são fundamentais para nortear o futuro da pecuária, seja ela bovina, suína e avícola. Para responder, é preciso saber as verdades econômicas de cada segmento da cadeia produtiva, incluindo o governo. O que está ocorrendo hoje com a carne bovina, seguramente, pode ocorrer com a carne de frango, além do que dificulta também a abertura do mercado europeu à carne suína brasileira.
O Brasil é um país que pode suprir a Europa; tem condições de atender às mais diferentes demandas da Europa, seja dos 12 países mais ricos, dos 15 países da zona do Euro ou mesmo dos 27 da União Européia ampliada. Isso implica em ofertar animais terminados em confinamentos, ou a carne “commodity”, ou mesmo a carne de baixo valor.
Para os brasileiros, as exportações de carne bovina para a Europa têm um efeito muito mais monetário que de volume. Em valor, as exportações de carne bovina representam cerca de 32% da receita total; em volume, 15,2% do total exportado e 3% do total de abate brasileiro.
Dentro da porteira, fica fácil entender a vantagem competitiva do Brasil quando se comparam os custos de produção nacional com o de países europeus. Aqui, em 2006, produzir 100 kg de carne bovina custava entre US$ 180 e US$ 200, sendo que o produtor apurava com a venda cerca de US$ 190. O produtor brasileiro, portanto, foi forçado a buscar mais eficiência e produtividade para se manter na atividade.
Na Irlanda, que atualmente é o país europeu que mais luta contra as importações de carne brasileira, o rebanho é por volta de 3 milhões de cabeças, e o produtor despende cerca de US$ 430 por 100 kg de carne produzida, recebendo cerca de US$ 300 pela venda da carne e mais US$ 7 de subsídio direto. Portanto, esses produtores também estão se descapitalizando. Em 2003, porém, os irlandeses gastavam cerca de US$ 380 para produzir os 100 kg de carne, recebiam US$ 280 com a venda do produto e mais US$ 130 de subsídio do governo.
Como se vê, nos últimos anos, ocorreu uma mudança da política agrícola comum da Europa que gerou descontentamento dos produtores daquele bloco. Como eles não conseguiram sensibilizar a comissão européia de agricultura para evitar tais mudanças, passaram a investir contra as importações do Brasil.
O subsídio é o motivo fundamental pelo qual a rastreabilidade funciona bem na Europa, pois cada produtor declara os animais e recebe um pagamento do governo. Lembrando que nos momentos de crise aguda, tanto da vaca louca quanto da febre aftosa, o sistema expôs muitas falhas.
A indústria européia também não tem muita vantagem em relação à indústria brasileira. A indústria brasileira, por raízes históricas, tem um padrão de funcionamento e controle que atende à demanda do mercado europeu. Por isso, sempre teve facilidades em atender à demanda desse mercado. No custo operacional padrão, um frigorífico brasileiro gasta cerca de US$ 180 por carcaça, enquanto um francês, US$ 400 e um holandês, US$ 550. Esses números mostram, portanto, que, do ponto de vista econômico, as exportações para Europa têm uma razão muito viável.
O terceiro grande interessado nessa história é o consumidor brasileiro que, em uma análise simplista, poderia ser beneficiado com a maior oferta de carne devido à suspensão das vendas para a Europa e redução de preços. Mas os números mostram que isso não ocorreu. E por que não?
Neste ponto, é preciso entender a dinâmica das exportações para a Europa. O boi pode ser fracionado em cerca de 420 produtos diferentes, entre carnes e subprodutos – em geral, são 12 cortes na parte traseira do boi, 5 na dianteira mais a chamada de “ponta de agulha”, que é a costela. O mercado europeu concentra suas compras nos cortes traseiros filé mignon, alcatra, contrafilé, coxão mole e coxão duro; os demais ficam para o mercado interno.
Os preços dos cortes exportados para o mercado europeu são elevados e isso explica a razão pela qual pequenos volumes representam grandes receitas. Por exemplo, o quilo de filé mignon é vendido para a Europa por cerca de R$ 52,00; a alcatra, por R$ 14,00 e o contrafilé, por R$ 17,00. No mercado atacadista interno, esses cortes são comercializados em torno de R$ 14,00/kg, R$ 8,00/kg e R$ 9,00/kg respectivamente.
Como o frigorífico não pode tirar apenas esses cortes da carcaça, é obrigado a comercializar a picanha, maminha e outros cortes no mercado interno a preços que, por vezes, é inferior ao valor que precisaria ter para cobrir seus custos e manter suas margens. A diferença vem das exportações para a Europa. O consumidor brasileiro é beneficiado pelas promoções do varejo dos cortes não exportados.
Um exercício com uma planta padrão de um frigorífico que abate 1.000 cabeças por dia, supondo uma margem líquida de 5%, mostra que tal unidade industrial teria dois caminhos para manter essa margem sem as exportações para a Europa. Um deles é manter os preços pagos pelo boi gordo e reajustar os preços da carne ao consumidor com vistas a manter a margem de comercialização, isto supondo que fosse possível o repasse de preços dos frigoríficos para o varejo. Outro é reduzir os preços do boi para manter os preços da carne, neste caso supondo que fosse possível repassar aos produtores as reduções de preços. Neste exemplo, no caso de reajustar a carne ao consumidor, o aumento deveria ser da ordem de 20%; de outra forma, o valor da arroba do boi teria de cair por volta de 17%.
Isso é apenas um exercício hipotético, uma vez que o frigorífico não tem capacidade de repassar integralmente esses valores ao atacado/consumidor e tampouco de reduzir o preço do boi. Além disso, a elevação dos preços da carne causa redução de consumo e, por conseqüência, novos preços de equilíbrio da carne e do boi.
O quarto interessado é o consumidor europeu. Ele precisa saber, entre outros aspectos, que toda a exigência à carne brasileira não é feita, por exemplo, para a carne proveniente de Botsuana, país africano onde ocorreu um foco de febre aftosa em 2006, mas que comercializa com carne bovina com a Europa sem cotas ou sobretaxas. Ainda no aspecto de qualidade, merece destaque o fato de que a Irlanda teve os primeiros casos de vaca louca. Além disso, tem a questão do preço. O italiano paga cerca de R$ 70,00 por quilo de filé mignon e o inglês, R$ 80,00/kg de contrafilé. Até que ponto esse consumidor está informado dessas questões?
Por fim, vale citar ainda que produtores, frigoríficos e consumidores precisam ficar atentos para as falsas promessas, acusações e especulações. O agente fundamental deste jogo é o governo, que tem a função de regulamentar e fiscalizar os procedimentos ao longo da cadeia. Para isso, o governo federal recolhe impostos de todos os elos da cadeia. Do abate até a desossa, por exemplo, a indústria paga 29% de impostos.
Esses valores entram nos cofres do governo e deveriam pagar, por exemplo, os gastos com a regulamentação e fiscalização do setor. A questão da rastreabilidade foi estabelecida para atender a uma demanda dos europeus, sendo que o governo brasileiro assumiu as tarefas de regulamentação e fiscalização. Vale lembrar que nenhuma carne sai do Brasil sem o aval do Serviço de Inspeção Federal (SIF). Portanto, é muito difícil para qualquer pessoa do governo atribuir ao produtor ou ao frigorífico a culpa pelo não funcionamento do sistema. Estes podem ter suas parcelas de culpa, mas dificilmente agiriam sem que o governo tivesse conhecimento.
A questão é saber se o Brasil está disposto a manter o mercado, conquistado com grandes dificuldades e, se estiver, quais serão as ações efetivas neste sentido? A questão de rastreabilidade necessita de muito investimento com vistas a se criar um produto confiável não apenas para a carne bovina que vai para o mercado europeu, mas para todos os produtos alimentícios ofertados para os brasileiros ou estrangeiros. Para a indústria, o benefício é ter um produto confiável e, para o produtor, a rastreabilidade pode ajudar na gestão do seu negócio. Enfim, das exigências da Europa, é possível tirar proveito para melhorar as condições de todos os elos da cadeia produtiva.
Outras informações sobre as pesquisas do Cepea, bem como contato com o autor, podem ser feitas através do Laboratório de Informação: 19-3429-8837 / 8836 e [email protected]