O conceito de geopolítica pode adquirir variados matizes, mas é em geral associado ao impacto que a geografia tem nas estratégias e políticas de determinados países ou regiões. Certo nível de poder político pode ser vinculado, por exemplo, a países que controlam vias navegáveis e comércio ou que detêm recursos como petróleo, gás natural, solos férteis, água, etc. Enquanto no passado a geopolítica centrava-se na luta pelo controle de espaços, recursos e comércio, como forma de poder, mais recentemente o conceito ganha novas facetas e muito mais complexidade.
Muitos analistas consideram que há amplas evidências de que uma nova geopolítica está substituindo o projeto de globalização que, sustentado na lógica de um mundo sem fronteiras, ganhou força no pós-Guerra Fria. Essa nova geopolítica perpassa múltiplos domínios, exigindo mais conhecimento sobre a natureza interconectada dos sistemas naturais, sociais, econômicos, políticos e tecnológicos. Veja se os desafios das mudanças climáticas, pandemia, guerra no leste Europeu, inflação e distúrbios nos fluxos globais de insumos e alimentos – ocorrendo ao mesmo tempo, com variados tipos de riscos – alguns antes improváveis, mas que, de repente, se tornam reais.
Insegurança alimentar está entre os riscos geopolíticos mais perigosos, pelos efeitos que tem em todas as dimensões da vida em sociedade. Afinal, acesso ao alimento está na base da estabilidade e da paz no mundo. Antes mesmo das crises concomitantes que vivemos, persistentes sinais de alerta indicavam aprofundamento de assimetrias econômicas e sociais e ameaçador crescimento da fome e da desnutrição no mundo. Situação hoje agravada, com muitos governos perplexos frente ao desafio de prover suas populações com alimentos adequados a custos acessíveis.
A retomada da demanda ao fim de dois anos de pandemia não encontrou eco nas debilitadas cadeias globais de suprimentos, e a Guerra Rússia-Ucrânia aviltou os preços do petróleo e do gás natural, provocando sérias rupturas nos fluxos de insumos e alimentos. O resultado é uma crise inflacionária de natureza global, sentida tanto por economias avançadas quanto por mercados emergentes e economias em desenvolvimento. A inflação de alimentos, medida pelo índice de preços da FAO (FFPI), que atingiu em 2021 o nível mais alto em uma década, deve infelizmente crescer ainda mais em 2022.
A atual crise aponta para duas situações que precisam capturar a atenção dos líderes e formuladores de políticas no Brasil, um grande produtor de alimentos e provedor-chave para inúmeros países ao redor do globo. A primeira diz respeito à necessidade — que é também uma oportunidade — de criar condições para que o Brasil produza uma excelente safra de alimentos nesse momento em que o mundo passa por enorme dificuldade. Tanto que uma das maiores lideranças do país, o ex-ministro Roberto Rodrigues, pede para 2022/23 um “plano safra de guerra” pela alimentação, causa humanitária das mais nobres, que poderá melhorar a nossa imagem internacional e, também, injetar recursos valiosos na nossa combalida economia.
A segunda situação diz respeito às mudanças que as atuais crises poderão provocar no futuro, com impactos para a agricultura e para o agronegócio exportador, que gera divisas tão necessárias para o país. Muitos acreditam que capacidade de produzir e prover alimentos pode se transformar em arma geopolítica, como a energia fóssil tem sido por muitos anos. Mas o exemplo excludente e insustentável do petróleo tende a afastar a possibilidade de paradigma semelhante emergir no futuro, ainda mais com alimento, que é recurso ainda mais essencial que energia.
O mais provável é que se intensifiquem esforços para que o mundo disponha de maior diversidade de fornecedores de alimentos no futuro. Por exemplo, ninguém deveria ficar surpreso se China e Rússia buscassem criar um novo cinturão de produção em imensas áreas do hemisfério norte, que passam a ter estações de cultivo viáveis em função do aquecimento global. Mas mudanças ainda mais radicais poderão vir de inovações tecnológicas disruptivas, em especial as que ampliem capacidade produtiva nos países que não possuem terras agricultáveis suficientes.
Em artigo publicado em 2020 pela Academia de Ciências dos Estados Unidos (PNAS Vol. 117:32, 19131-19135), cientistas descrevem a modelagem de uma inusitada fazenda artificial, em estrutura vertical de 10 camadas, equivalente a um hectare de terra, formatada para produzir trigo com temperatura otimizada, luz artificial e altos níveis de CO², injetados como “fertilizante”. Estrutura modelada para produzir, anualmente, de 220 a 600 vezes o volume de trigo produzido em fazenda convencional. Tal fazenda artificial usaria espaços diminutos, eliminaria rigores e imprevisibilidades do clima, reutilizaria água e nutrientes e excluiria pragas e doenças.
Ficção científica, muitos dirão. Mas com disponibilidade de fontes renováveis e baratas de energia e aumentos nos preços de alimentos, tal modelo de produção poderá ganhar espaço, funcionando como usinas produtoras de alimento e recicladoras de carbono, operando em grande proximidade e sintonia com as cidades e consumidores cada vez mais exigentes em sustentabilidade. Esse é um exemplo de transformações que poderão acontecer em futuro não muito distante, e o Brasil só conseguirá participar delas se investir mais em ciência e inteligência estratégica.