Eric Lafenêtre empurra a porta e centenas de patinhos saem correndo para um canto da granja. “Eles chegam aqui com oito dias”, diz o produtor francês, enquanto pega um deles nas mãos. “Quando eu colocá-lo de volta no chão, os outros vão ficar olhando para saber o que aconteceu. São muito curiosos.” Esposa e sócia, Valérie Lafenêtre sorri enquanto a pequena ave se reintegra ao grupo. “Eric ama os patos”, ela comenta.
O casal trabalha desde 1985 com os animais numa fazenda de 16 hectares em Chalosse, no sudoeste da França, onde a criação de patos é típica. Durante quatro meses do ano, eles vivem entre um gramado e o galpão, protegidos da chuva e do frio, e recebem “bonjour” de seus criadores todas as manhãs. Quando passam dos 3,5 quilos, no entanto, são levados em turmas de 240 cabeças para a etapa de engorda, na qual a história de amor chega ao fim.
Na última quinzena do ciclo produtivo, cada ave é forçada a engolir, duas vezes por dia, cerca de meio quilo de milho, numa dieta comum da Costa Atlântica aos Pirineus: o gavage (do francês gaver, ou empanturrar), feito para inchar o fígado do animal até pesar algo entre 350 e 900 gramas, ou dez vezes o tamanho original. Este é o padrão obedecido para a produção do foie gras, uma iguaria da culinária francesa.
No ambiente silencioso e frio da sala de gavage, na qual os patos, todos machos, ficam presos em duas baias compridas, Eric faz uma demonstração: aciona garras que descem sobre o pescoço de cinco aves e as empurram contra um parapeito, enquanto elas se debatem e contorcem as asas. O produtor puxa a cabeça de uma delas, que tem escoriações nas penas, e força a abertura de seu bico pelas laterais. Depois, simula a inserção de um tubo que atravessará a garganta do animal até chegar ao estômago, onde a ração, tratada em água quente e gordura, será despejada.
O meu gavage não é cruel”, defende Eric, que considera sua produção artesanal. “Eu o faço pato por pato, levando 15 segundos para cada animal. O pato é meu patrão. Nas grandes indústrias, eles usam máquinas pneumáticas que ‘fazem’ até 20 patos por minuto.” A mesma prática, à qual nem todas aves sobrevivem – 1 milhão de exemplares morrem por ano, segundo estimativas –, está presente em pelo menos 3.500 propriedades rurais do sudoeste francês, que fabricam mais de 20.000 toneladas do produto por ano, ou algo acima de 70% do consumo mundial.
Em se tratando de alta gastronomia, não faltam exigências para a produção do fígado de pato, a fim de se dar garantias aos importadores. Para obter um selo de indicação geográfica reconhecido pela União Europeia (UE), o IGP Canard à Foie Gras du Sud-Ouest, os criadores devem estar atentos à origem dos animais e do milho; aos prazos do ciclo produtivo; e a condições mínimas de higiene e savoir faire. Porém, nenhuma garantia é dada às aves contra o sofrimento na sala de gavage.
O foie gras não é um caso isolado na indústria da alimentação europeia. Outro exemplo é a criação do porco ibérico, com o qual se produz o presunto pata negra, vendido como “porco negro criado em liberdade” em alguns restaurantes europeus. Produzido na Espanha, o suíno recebe um tratamento criterioso, vivendo ao ar livre e comendo bolotas (fruta do Alentejo que dá sabor à carne). Entretanto, antes de ser solto, passa por severas mutilações: seu focinho é perfurado para a colocação de um anel que o impede de revolver a terra à procura de raízes; os dentes são cortados, para evitar que ele morda o rabo dos outros, o que faz porque vive em estado de neurose ; e o ovário das fêmeas é retirado por um corte no ventre, segundo defensores dos animais.
As galinhas poedeiras têm seus bicos cortados em lâminas quentes quando chegam às indústrias. O ciclo produtivo das aves dura dois anos, em que ficam presas em gaiolas de até 50 centímetros, em grupo, sem conseguir abrir as asas. Doenças causadas por fezes e urina são comuns. Na Inglaterra (plantel de 34,8 milhões), o custo produtivo é de 2,35 libras por cabeça.
Um cliente exigente
Na condição de grandes importadores de carne e membros da UE, França e Espanha (dois países onde as touradas são comuns) fazem parte do coro formado pelo bloco, em nome dos consumidores, para pedir menos “crueldade” aos frigoríficos do Brasil. No início deste ano, as autoridades sanitárias visitaram o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para assinar um acordo destinado à criação de uma lei que garanta a introdução e melhoria de procedimentos de bem-estar animal nas indústrias exportadoras.
Desde janeiro, o Mapa vem trabalhando junto à Direção Geral da Saúde e Proteção do Consumidor da Comissão Europeia (DG Sanco) na construção de um memorando de cooperação técnica que prevê mudanças nessa área. “Há um interesse crescente nas questões relacionadas ao bem-estar, de como os animais são criados, transportados e abatidos”, explica o chefe da entidade, Andrea Gavinelli. “O que queremos é avaliar o jeito como isso acontece hoje nas indústrias brasileiras.”
Segundo Gavinelli, o objetivo da missão é construir uma legislação que reflita as normas da UE, que segue as orientações da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) para o tema. Atualmente, no Brasil, a proteção aos animais é regulada pelo Decreto no 24.645/1934, mas a lei está em vias de ser atualizada pelo governo, com a Instrução Normativa no 03 (IN3), que trará as novas especificações para o manejo de aves, suínos e bovinos.
Na avicultura, a União Europeia e o Brasil divergem, por exemplo, no que diz respeito a galinhas poedeiras. Na Europa, só são permitidas as gaiolas enriquecidas – aquelas em que as aves têm mais espaço. A oferta europeia de ovos dispõe de um sistema de rotulagem conforme os métodos de criação: orgânico, galinhas livres, aves criadas em galpões e gaiolas enriquecidas.
No Brasil, os ovos ainda são produzidos por galinhas criadas em gaiolas comuns, embora haja empresas, como a Korin, que já adotam o sistema de galpões. No segmento de carne suína, a UE determina, numa lei que entrou em vigor neste ano, que as granjas sejam estruturadas de forma que as porcas prenhes fiquem em grupos, e não em celas individuais, como acontece no Brasil.
Fazendas brasileiras, como a Miúnça, em Brasília, começam a experimentar o método europeu. Segundo seus proprietários, o investimento na estrutura é superior ao de uma granja comum, mas os leitões das porcas criadas coletivamente nascem com maior peso em relação aos outros.
Quanto à produção de bovinos, o Brasil está mais avançado em relação às exigências da UE. Neste caso, os exportadores seguem as normas de abate humanitário previstas em duas instruções normativas (IN 56/2008 e 03/2000) e as recomendações da Comissão Europeia inscritas no Regulamento 1099, de 2009, com diretrizes para o manejo, atordoamento e sangria dos animais.
No mesmo documento, ainda há recomendações para a presença de um responsável pelo bem-estar animal nas plantas frigoríficas e a realização de treinamentos com o pessoal que tem contato com os bois até o momento da sangria. Algumas dessas medidas ainda estão em período de adaptação, e “novas normas de bem-estar são esperadas em breve”, segundo a Associação das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), que prevê elevação de custos.
Cortes nobres
Juntas, as exportações brasileiras de carne em 2012 somaram US$ 13,7 bilhões, dos quais R$ 2 bilhões provenientes do embarque para os 28 países da União Europeia. A exportação de carne bovina à UE totalizou 96.600 toneladas entre janeiro e julho de 2013. O país vendeu, no mesmo período, 302.800 toneladas de carne de frango às nações do bloco. Em suínos, a relação foi de pelo menos 1.100 toneladas.
“A Europa é um mercado importante. Compra cortes mais caros, mais nobres”, comenta o presidente da Abiec, Fernando Sampaio. “A UE é avançada em termos de legislação para o bem-estar animal, mas ao mesmo tempo constitui uma das maiores demandas por carne do mundo”, observa o porta-voz no Reino Unido da associação internacional Por um Tratamento Ético aos Animais (Peta, na sigla em inglês), Ben Williamson. Para ele, maus-tratos acontecem tanto nos frigoríficos europeus como em quaisquer outros, em função da demanda. “Compramos carne no supermercado, onde são mais baratas, fornecidas pelas indústrias que não se importam com isso”, diz. Vale lembrar que o consumo per capita de produtos de origem animal supera os 80 quilos nas nações ricas (são 30 quilos nas pobres), de acordo com a FAO.
Mas é na alta gastronomia que a polêmica está mais intensa. O Estado mais rico dos Estados Unidos, a Califórnia, proibiu, em 2012, a produção e o consumo do foie gras por considerar o gavage uma forma de tortura. Em resposta, o departamento de Gers proibiu a importação de vinho californiano. A base produtiva recorreu ao governo, e o ministro da Agricultura da França, Stéphane Le Foll, pôs-se a defender o foie gras como uma tradição local. O presidente François Hollande prometeu proteção comercial ao Comitê Interprofissional do Foie Gras (Cifog), que reúne os principais agentes dessa indústria. Os ativistas do Peta consideram inaceitável a existência do foie gras e promovem manifestações em Paris quando se aproximam as festas de fim de ano, período em que o consumo do produto atinge seu pico.
A polêmica chegou a São Paulo. A Câmara Municipal realizou em outubro a primeira votação sobre a proibição da produção e comercialização de foie gras. A maioria dos vereadores foi a favor, mas são necessárias uma segunda votação e a sanção do prefeito para que o projeto se torne lei. Chefs de cozinha de restaurantes estrelados saíram em defesa do produto. O debate, antes circunscrito a ambientes sofisticados, ganhou as ruas da capital paulista.
“Não são exigências”
As demandas pelo bem-estar animal fazem parte de um “marco normativo mundial”, estabelecido pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), e são antes orientações sobre como reduzir o sofrimento nos frigoríficos do que exigências restritivas impostas pelo mercado europeu. Assim interpreta a conselheira em comércio da delegação da União Europeia no Brasil, Titta Maja.
“Estamos falando de um marco em nível mundial. A UE colabora muito com a OIE, e os brasileiros estão trabalhando com eles também, sob a mesma regulamentação. Eu não diria que é só uma questão de interesse comercial; é um marco normativo mundial, que serve como uma meta para todos nós”, disse a diplomata finlandesa, em entrevista por telefone, à Globo Rural. Ela classificou de “excelente” a colaboração da indústria de carnes e do governo brasileiros com os planos da OIE.