Por Humberto Luis Marques e Rodolfo Antunes, de São Carlos (SP)
No setor agropecuário brasileiro é muito comum ouvir que produzir de forma ambientalmente correta é caro. Na opinião do pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, Julio Cesar Pascale Palhares, este é um paradigma que precisa ser quebrado. “A afirmação de que é caro é algo muito comum dentro do setor rural brasileiro. Eu sempre respondo esta questão com uma pergunta: qual é o custo? Desconheço qualquer estudo que mostre, dentro do custo de produção animal, qual é o custo ambiental”, afirma.
Os custos de produção ainda são feitos de forma clássica, não incluindo os valores decorrentes do manejo de resíduos gerados, muito menos outros aspectos do manejo ambiental. Com a intensificação da produção, os volumes de resíduos se tornam cada vez maiores e exigentes de tecnologias de tratamento. A nutrição é um ponto-chave neste processo. Segundo Palhares, por ser o item de maior impacto no custo produtivo, há reticência dos nutricionistas em agregar tecnologias à formulação. No entanto, o que pode parecer um eventual encarecimento neste ponto, pode significar uma economia enorme no todo, se vislumbrado os gastos com o posterior manejo dos volumes de resíduos gerados.
Outro paradigma apontado pelo pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste que precisa ser quebrado é o da existência de uma produção sustentável. “Afirmar que temos uma produção sustentável virou dogma. Desconheço onde fica esta produção. Falo com base no livro [Nosso Futuro Comum, 1987] que traz o conceito de sustentabilidade. Basta lê-lo para perceber o quão distante estamos. E não me refiro somente ao Brasil, mas ao mundo todo”, ressalta Palhares.
Nesta entrevista, o pesquisador discute o conceito de sustentabilidade com base no tripé econômico, social e ambiental; fala sobre a disposição aleatória de resíduos no solo sem a adoção do princípio de balanço de nutrientes, e do risco desta prática; aborda ainda extensão rural, a falta do tema ambiental na formação dos profissionais agropecuários e outros assuntos. Confira.
O senhor costuma afirmar que a produção animal está passando por um processo de transformações, chamado de Revolução da Produção Animal. O que seria esta revolução?
Júlio Cesar Pascale Palhares – Ela é marcada basicamente pela intensificação das produções. É um processo já ocorrido principalmente na região Norte do globo: países europeus, Estados Unidos e Canadá. O grande salto proporcionado por ela é bem similar ao gerado pela Revolução Verde na agricultura da década de 1970. Nela, o carro-chefe era o uso intensivo de fertilizantes, sementes melhoradas e outras tecnologias. Na produção animal, a premissa também é esta: uso intensivo de insumos, basicamente ração. No caso de ruminantes, é a intensificação de pastagens, com aplicação pesada de fertilizantes. No geral, podemos dizer que é ofertar alimentos em maior quantidade e com qualidade. Outra característica desta revolução é a migração da produção animal de centros tradicionais para outras localidades. Na Europa está migração se deu para os países do chamado leste europeu, que eram integrantes ou tinham influência da antiga federação russa. Quando ocorreu a abertura política, estes países ofereciam mão-de-obra barata e em quantidade, além de legislações ambientais mais frouxas e grandes áreas disponíveis. Na Europa, área é um limitante grande da produção.
Este processo de migração ocorreu também para outras regiões do mundo?
Palhares – Há alguns anos ela ocorreu para os países do Hemisfério Sul. Brasil, Argentina e o México, que embora não esteja no Sul vou incluir neste grupo também, são locais onde este processo está acontecendo há anos. No futuro, o continente africano é apontado como provável local aonde esta revolução também deverá ocorrer. Os países da África possuem mão-de-obra, recursos naturais e terras disponíveis. Detém ainda uma vantagem sobre o Brasil, que é a maior proximidade com a Europa e a Ásia. No entanto, na África este processo não explodiu ainda. Em relação especificamente ao Brasil, todos os estudos – seja do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Banco Mundial ou FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] – colocam o país como referência na produção de proteína animal, principalmente em aves de corte, suínos, peixes e bovinos de corte. É um processo que já acontece aqui e tende cada vez mais se ampliar, principalmente em cadeias com menor intensificação.
Qualquer setor produtivo de proteína animal que pretenda manter-se competitivo terá de intensificar sua produção?
Palhares – Este “manter-se competitivo” vou colocar entre aspas. Pensando somente no lado econômico, há um histórico de redução das margens de lucro. É preciso ter escala de produção para ganhar. As margens diminuíram e ele precisa ter escala. Agora, o processo de intensificação não é novo. Historicamente, ele tem passivos tanto na área social quanto ambiental. Na social, o maior problema é que a intensificação gera exclusão. Se antes havia dez produzindo, hoje um produz o que dez produziam anteriormente. Nove são levados a deixar o sistema porque só se mantém na atividade quem tem capital e grande escala de produção. Neste cenário, pequenos e médios são os que sofrem mais. Na área ambiental, a intensificação resulta em uma geração maior de resíduos por área, eliminando alternativas de manejo. A única que resta é a do tratamento. E não pode ser qualquer um. O que for adotado com certeza exigirá um nível de conhecimento bem mais apurado do produtor. Além disso, a intensificação cria uma dependência muito grande de insumos, como atualmente acontece nas cadeias produtivas de aves e suínos.
Mas, tanto suínos quanto aves tenham na sua base alimentar o milho e soja há muito tempo.
Palhares – Só que no passado estes produtores eram também agricultores. Hoje em dia, não. Eles são consumidores de grãos. Suinocultura e avicultura são as atividades mais intensificadas no País. Os animais ficam em total confinamento e há uma grande dependência de insumos de fora. Observe o caso de Santa Catarina. Ao longo dos anos ocorreu uma diminuição da produção interna de milho e soja, que agora é importada do Paraná, Mato Grosso do Sul ou Rio Grande do Sul. Energia é um insumo fundamental em produção animal. Depender energeticamente do externo, torna o produtor ou sistema produtivo muito frágil. Qualquer problema na cadeia gera um impacto gigantesco. No passado, o produtor intensificado trabalhava com vários tipos de produções pecuárias e agrícolas. Conforme as oscilações de mercado, ele se segurava mais em uma ou outra. É muito comum ouvir que é preciso intensificar para se alimentar o mundo. É a propaganda usada para justificar a intensificação. Não concordo muito com isto. A fome no mundo é menos uma questão quantitativa, ou seja, falta de alimentos, e muito mais uma questão relacionada à capacidade de as pessoas comprarem o seu alimento.
Não há falta de alimento no mundo?
Palhares – Hoje, estudos da FAO já apontam que se produz uma vez e meia mais alimentos do que o mundo seria capaz de consumir, considerando uma dieta básica para um ser humano. Os últimos números disponíveis indicam que, das quase sete bilhões de pessoas no planeta, 870 milhões passam fome. É um número bem significativo. No entanto, deste total de famintos no mundo, muitos não têm como adquirir alimentos. Por mais baratos que eles sejam. Estas pessoas não possuem poder aquisitivo para isto. Outra variável desta discussão é a de que, diante da necessidade de intensificar para se alimentar o mundo, é justificável aceitar a existência de alguns passivos sociais e/ou ambientais. Este tipo de argumento favorece alguns, mas não é de todo verdadeiro. Não sou contra a intensificação. É um movimento que já está em curso e será cada vez mais acentuado. Gostaria sim, que a intensificação não considerasse somente a questão econômica, mas também as outras vertentes da tão almejada sustentabilidade. O fato é que estamos bem longe disto. Se irá intensificar? Perfeito. Mas, é preciso também internalizar o manejo de resíduos neste processo. Não dá para intensificar acreditando ser possível manejar resíduos com esterqueiras ou simples leiras de compostagem.
O senhor citou a FAO. Em um de seus estudos, ela indica ser necessário aumentar em 60% a produção agrícola mundial para suprir as necessidades de uma população de nove bilhões de pessoas em 2050. Líderes ligados ao agronegócio afirmam que é possível ampliar a produção com responsabilidade social, econômica e sem agressão ao meio ambiente. No entanto, eles indicam que este tipo de discussão privilegia o aspecto ambiental em detrimento do econômico. A proteína tem de chegar ao consumidor final com um valor acessível. Produzir com responsabilidade é possível, mas implicaria em custos adicionais. Como o senhor analisa este argumento?
Palhares – É plenamente possível se chegar em 2050 produzindo proteína animal com qualidade ambiental. A avicultura é uma referência para mudanças, pois é a cadeia produtiva que mais rapidamente absorve novas tecnologias e inovações. Ela responde muito rápido aos desafios, com as outras vindo a reboque. Observando a avicultura, notamos exemplos de que é possível produzir considerando também a questão ambiental. O fato é que no dia a dia o manejo ambiental e/ou de resíduos ainda é pouco internalizado. O argumento que se coloca muitas das vezes é o de que falta tecnologia. Não é verdade. Temos tecnologias validadas e que poderiam estar sendo usadas no campo. Outra justificativa comum é a de que é muito caro, por isto não tem como fazer. Qualquer tecnologia tem um custo mais elevado no início de seu uso, exatamente porque está pouco difundida. É um ciclo natural, no qual o custo dela vai baixando conforme a sua aplicação se torna mais comum. Isto até o momento desta tecnologia não ser mais a melhor, porque uma nova foi desenvolvida. É preciso considerar este ciclo, comum a qualquer tipo de produto ou solução tecnológica.
Apesar disto, produzir de forma ambientalmente correta não é ainda muito caro?
Palhares – A afirmação de que é caro é algo muito comum dentro do setor rural brasileiro. Eu sempre respondo esta questão com uma pergunta: qual é o custo? Desconheço qualquer estudo que mostre, dentro do custo de produção animal, qual é o custo ambiental. Ainda se calcula custo de produção animal da forma mais clássica que se tem: ração, medicamentos, energia, tributos, depreciação. Se realmente queremos o meio ambiente como um fator de decisão, ele tem que entrar na discussão econômica. É a única forma de verdadeiramente sabermos qual é o seu custo e como iremos dividi-lo. Ele não pode simplesmente “sobrar” na mão do produtor. É covardia. O consumidor, que é o último elo da cadeia, passa a ter valores ambientais, sociais e de bem-estar animal. Ótimo, mas estes valores podem representar um acréscimo no valor do seu alimento. O consumidor tem de estar disposto a pagar por isto. Não adianta só exigir.
No Brasil houve uma ascensão econômica e as pessoas passaram a consumir mais carne. O senhor acredita que elas estariam dispostas a pagar este custo adicional?
Palhares – Creio que não. O Brasil possui uma população de mais ou menos 200 milhões de pessoas. Pouco mais de 100 milhões são as chamadas classes ascendentes C e D. Classes que culturalmente não consumiam proteína animal e começaram a consumir com frequência. Os valores desta classe agora são: eu quero comer. Não lhe interessa como é produzido, até porque eles não tinham acesso. Quem está disposto a pagar são alguns nichos, formado por pessoas de maior poder aquisitivo, principalmente nas grandes capitais brasileiras. Pessoas que compram em verdadeiras boutiques alimentares, onde podem optar por um alimento produzido da forma que julgam correta. Agora, grande parte da população brasileira não tem este valor ainda e não está disposta a pagar. Outro ponto importante nesta discussão é a remuneração do produtor. Em cadeias como a de suínos e aves, a verticalização é intensa. Ao discutir o custo ambiental, obrigatoriamente se deve rever esta remuneração. Ao se exigir do produtor uma série de coisas, pagando a ele os mesmos valores por sua produção, o negócio se torna inviável. É matemática. Em algum momento ele vai quebrar. A agroindústria também tem de estar disposta a remunerar por este custo ambiental.
A pressão para se adequar ambientalmente parece ficar mais em cima do produtor. As agroindústrias têm apoiado ou criado formas de incentivo?
Palhares – Hoje, há programas internos de algumas agroindústrias que bonificam produtores que trabalham de forma ambientalmente correta. É um incentivo. Por lei, é obrigatório o licenciamento ambiental da produção, que obriga a agroindústria à só adquirir matéria-prima de quem for licenciado. As agroindústrias têm apoiado, sim. Há alguns anos elas criaram departamentos ambientais internos, promovendo o treinamento de seus técnicos para auxiliar os produtores a se adequar legalmente. Projeto que envolve a recuperação de mata ciliar, reserva legal e manejo dos resíduos. No entanto, tenho observado que o técnico de fomento ainda atua de maneira tradicional ao visitar uma propriedade. Ele fala sobre sanidade, nutrição, equipamentos, mas leva pouca informação sobre a parte ambiental. Depois de conseguida a licença parece que tudo foi resolvido, como mágica. Não se precisa fazer mais nada, quando na verdade meio ambiente exige um manejo diário.
Poderia dar um exemplo?
Palhares – Vamos supor um produtor que já tenha sua licença ambiental. Quase 100% deles utilizam os resíduos da produção como fertilizante. Dispor este material no solo é benéfico agronomicamente. Agora, se feito de forma errada, torna-se um risco ambiental para o solo, a água e o ar. Sem um treinamento ou monitoramento adequado, este produtor continua a ser um ponto de impacto ambiental, mesmo estando devidamente licenciado. Outro exemplo é o uso do hidrômetro, que passou a ser obrigatório para a certificação de granjas avícolas pelo Mapa. Eu visitei recentemente algumas propriedades e todas tinham hidrômetro instalado. Só que ao chegar às granjas e perguntar para o produtor onde ele anotava os valores do hidrômetro, invariavelmente a resposta era: mas tem que anotar? Ele não sabia qual a utilidade do equipamento. Colocou ali porque disseram que era obrigatório. O indicador de consumo de água é poderosíssimo. Pode ser correlacionado com desempenho, sanidade, bem-estar. Ele tem em mãos uma importante ferramenta, mas por falta de conhecimento ou de assistência técnica, não sabe como aproveitar. Apenas cumpre a lei. O mesmo em relação à qualidade da água. Uma vez por ano é preciso fazer análise da água ofertada às aves. É feita? Sim. Chega o laudo do laboratório apontando estar de acordo com os padrões. Só que qualidade não é algo eterno. Pode depreciar conforme o uso do ambiente. Interpretando tecnicamente a análise, seria possível prevenir problemas futuros a partir de indicativos apontados no resultado. São coisas que o setor precisa ficar atento para poder dar um salto qualitativo em relação à questão ambiental.
Estamos falando de produtores e agroindústria. Como ficam os outros elos da cadeia produtiva?
O que precisaria mudar?
Palhares – No manejo ambiental de resíduos, a nutrição é a chave de tudo. É por ela que se tem de começar. Hoje, temos tecnologias disponíveis e conhecidas há anos: fitase, aminoácidos, minerais orgânicos. Todas com impacto positivo tanto no desempenho quanto na questão ambiental. Escuto de alguns nutricionistas que estas tecnologias não estão totalmente utilizáveis porque o custo não compensa. Fica muito caro. Uma nutrição ambientalmente correta reduz o custo do manejo ambiental, gerando menos resíduos e menor carga poluidora. Só que não se mensura este custo ambiental. Ele ainda é tratado de forma marginal. É difícil convencer um nutricionista de que determinada formulação será vantajosa para o meio ambiente e não trará perdas econômicas. O custo de produção é feito de forma clássica e alimentação é o item de maior impacto. É preciso provar a este profissional que ao mexer na formulação fica mais caro neste ponto. No entanto, ao considerar o custo total, incluído a parte ambiental, fica muito mais barato. Trabalho em um projeto para suinocultura com objetivo de testar várias dietas comerciais; desde uma sem tecnologia ambiental até a mais correta ambientalmente. Queremos provar que uma formulação nutricionalmente boa, do ponto de vista ambiental, não significa prejuízo. O tamanho da esterqueira ou biodigestor será menor, assim como o volume de dejeto aplicado nas lavouras. É menos tempo e custo.
Em suas palestras, costuma citar a necessidade de se quebrar alguns paradigmas em torno da questão ambiental. Que paradigmas são estes?
Palhares – Um que tento quebrar diariamente é o de somos sustentáveis. Afirmar que temos uma produção sustentável virou dogma. Desconheço onde fica esta produção. Falo com base no livro [Nosso Futuro Comum, 1987] que traz o conceito de sustentabilidade. Basta lê-lo para perceber o quão distante estamos. E não me refiro somente ao Brasil, mas ao mundo todo. A FAO lançou recentemente uma publicação sobre emissões de gases de efeito estufa. A conclusão é que nos últimos dez anos as emissões aumentaram, principalmente na agricultura. O aquecimento global é talvez o maior mote ambiental do momento. Está na mídia, é discutido em todo lugar. Mesmo assim, as emissões de gases não diminuíram. Elas aumentaram. Nós não somos sustentáveis. Outro paradigma a ser quebrado é: fazer meio ambiente é caro. Não se pode dizer isto simplesmente porque não há informações que embasem esta afirmativa. É caro, mas onde? Qual o custo de pegar uma cama de aviário e aplicá-la como fertilizante? Como isto impacta no meu custo? São informações iniciais; perguntas que ainda precisam de respostas baseadas em estudos técnicos. Outro paradigma: acreditar que fazemos manejo ambiental. Costumo falar em quatro M’s, que são manejo hídrico, manejo do solo, manejo de resíduos e manejo ambiental, o qual engloba os três primeiros. Dos quatro, temos algumas coisas de cada um nas produções. A ideia é ter 100% para que as mudanças realmente ocorram. É necessário parar de achar que tudo já foi feito. Há muito ainda para se fazer.
Manejar resíduos não significa ser sustentável, então?
Palhares – Manejo de resíduos não é sinônimo de sustentabilidade. Apesar de mais amplo, o próprio manejo ambiental não pode ser adotado como sinônimo para sustentabilidade. A sustentabilidade possui um tripé, formado pelo econômico, social e ambiental. Não adianta ter a parte ambiental, se socialmente há problemas ou economicamente não é viável. O manejo ambiental contribui para a sustentabilidade, mas não é sinônimo dela. As pessoas também acreditam que pelo simples fato de se ter o licenciamento, se é sustentável. Licenciamento ambiental é só uma gotinha neste oceano chamado sustentabilidade. Ter a licença é uma obrigação legal. O conceito de sustentabilidade está muito mais inserido em questões voluntárias, em querer fazer hoje para garantir as futuras gerações.
O livro a qual o senhor se referiu há pouco é Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland, elaborado pela Comissão sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU [Organização das Nações Unidas]. A obra é de 1987. Por que ela se mantém tão atual?
Palhares – Porque não se conseguiu fazer a grande maioria das coisas descritas nele. O livro projetava que em 2000 teríamos um planeta sustentável. Em 2000 este objetivo não foi atingido, e estávamos cada vez mais distantes. Em 2014 ainda não foi atingido, e continuamos cada vez mais distantes. O recente relatório sobre emissões de gases de efeito estufa divulgadas pela FAO é um exemplo disto. Nosso Futuro Comum foi onde primeiramente se apresentou este conceito de sustentabilidade. Um produtor tem sua propriedade. Ela tem limites físicos, que é a cerca. No entanto, esta propriedade está em constante troca com o mundo externo. Seja pela venda de matéria-prima produzida ou pela aquisição de insumos. Não se pode dizer que uma fazenda é sustentável se o entorno dela é insustentável. Os profissionais agropecuários: zootecnistas, veterinários, agrônomos, engenheiros agrícolas e outros são formados ainda com uma visão muito pontual. É necessário enxergar os novos temas da produção. Imaginar que o nosso trabalho é pegar um galpão, alojar animais e alimentá-los até atingirem o máximo de ganho de peso é pouco. Não é mais só este o nosso papel. Foi no passado. Hoje, não é mais aceito. Este galpão está inserido em uma propriedade rural, a qual está inserida em uma bacia hidrográfica de um Estado, inter-relacionada a um País. As dimensões são outras.
Falta esta visão macro aos profissionais?
Palhares – Fica difícil internalizar novos conceitos quando o profissional ainda tem esta visão muito pontual da atividade produtiva. Ele enxerga pontos e tem dificuldade de relacioná-los com o todo. Por exemplo, o nutricionista é um especialista, mas deve entender de economia, de mercado de commodities e de que forma a atividade dele impacta positiva ou negativamente o ambiente. Ele precisa saber ligar estes pontos.
As faculdades não incluem em suas grades curriculares nada relacionado à questão da sustentabilidade ou até mesmo ao manejo de resíduos?
Palhares – Nas faculdades de zootecnia, veterinária e de agronomia os alunos passam pelo estudo das várias culturas animais. Se um estudante perguntar ao professor o que fazer com os resíduos, a grande maioria vai sugerir procurar algum livro na biblioteca ou pesquisar na internet. O que ocorre é que muitos são antigos de profissão e não internalizaram estas novas questões. Neste sentido, acaba saindo um profissional ambientalmente cru da faculdade para o mercado. Caso ele precise licenciar uma propriedade, terá muitas dificuldades. O nosso profissional agropecuário tem carências dos conceitos ambientais. Tanto que este mercado de licenciamento é ocupado por engenheiros ambientais, ecólogos e gestores ambientais. Eu desconheço, embora possa até existir, cursos de graduação com uma disciplina específica para o manejo de resíduos animais. O tema surge quando se estuda as culturas, mas em uma ou duas aulas apenas. Não será desta forma que provocaremos mudanças no campo. Seria necessário dar esta formação ao profissional agropecuário, só assim ele teria como optar em trabalhar com o manejo de resíduos.
No caso dos produtores, também faltaria conhecimento técnico ou orientação em questões como o manejo de resíduos?
Palhares – Faltam os dois. Conhecimento e orientação. O último senso agropecuário, que é de 2006 e já está bem defasado, aponta que a maioria dos produtores brasileiros não têm o primeiro grau de escolaridade completo. Ou seja, mal sabem ler e escrever. Então, esse agente tem dificuldade em buscar conhecimento. A simples leitura do boletim de uma cooperativa é um desafio muito grande para ele. Nós vamos pegar esse ator e colocá-lo num banco de escola e ensiná-lo? Não, não vamos. O que nos resta é capacitá-lo e assisti-lo. Daí a importância da extensão rural neste País. Serviço que vive de modismos; ora sucateado, ora vira vedete. E tem o outro lado, o da orientação. Os técnicos que integram o corpo de fomento das agroindústrias têm como função primeira orientar os produtores. Em cadeias como as de suínos e aves, que são mais tecnificadas, isto é comum. Estes produtores possuem maior poder de decisão porque recebem uma orientação que, com frequência, é muito boa.
A agroindústria orienta os seus integrados. Quem não participa do sistema de integração tem a quem recorrer?
Palhares – Os que não participam deste sistema estão sós. Hoje, a extensão rural pouco chega a grande massa de produtores. Eles não têm orientação adequada nem educação formal para fazer. Por isso, coisas simples se tornam muito complexas no dia a dia da propriedade. O que não deveria acontecer. O ideal seria chegar lá e orientar sobre quais procedimentos adotar, explicando o por quê e qual melhoria trará para os resultados dele. Mas nem isto se consegue fazer. A maioria das vezes a informação não chega a este produtor.
Durante sua palestra no Congresso de Ovos da APA [Associação Paulista de Avicultura], o senhor apresentou uma imagem de um produtor fazendo fertirrigação. Apesar de ser uma prática comum, indicou que ela é comumente feita de maneira errada. Por quê?
Palheres – No Brasil e no mundo, os resíduos têm como uma das principais rotas de manejo a disposição no solo, seja na forma líquida ou como lodo, composto ou biofertilizante. Embora não existam estatísticas, poucas propriedades no país possuem tecnologias de tratamento instaladas. A maioria comercializa o resíduo como insumo agrícola ou o utiliza em lavouras próprias. O que nos ensina a agronomia? É possível fazer a aplicação no solo da mesma maneira dos adubos químicos. A questão é que o solo tem seus nutrientes, assim como a cultura a ser plantada possui demandas específicas de nutrientes. Seria necessária uma análise daquele solo, correlacionando com o que se pretende cultivar ali. O problema é que hoje isso não é feito na grande maioria das propriedades.
Os resíduos são dispostos aleatoriamente no solo, sem nenhum critério técnico?
Palhares – Os resíduos orgânicos são vistos como um “nutriente” a mais oferecido ao solo. Ao mesmo tempo, muitas das vezes o solo é entendido como uma lata de lixo. No passado foram os rios. No Brasil, há todo um histórico de galpões construídos a margens de rios e ribeirões porque a “água levava”. Hoje, por uma pressão social isto mudou. Dificilmente se vê alguém jogando detritos diretamente nos rios. O solo, no entanto, pode virar uma lata de lixo. Hipoteticamente, vamos dizer que para eu nutrir determinada planta precisaria de 100 quilos de nitrogênio, oriundo de resíduos. Se não há nenhum tipo de controle ou análise, disponibilizo nesta área 300 quilos de nitrogênio via resíduos. A diferença que permanece se torna um risco. Ele vai infiltrar, podendo contaminar o lençol freático. Ele vai escorrer, podendo contaminar rios próximos. Ele vai emitir uma série de gases: os de efeito estufa, amônia e odores os quais podem levar a conflito entre vizinhos. O excesso de resíduos também pode ser tóxico para cultura plantada. É preciso adotar o princípio do balanço de nutrientes para não se causar problemas ambientais.
Com a extensão rural, este é um problema que poderia ser minimizado?
Palhares – Os produtores precisariam ter alguém os auxiliando neste manejo. Um técnico que o ajudasse a tomar decisões, baseadas tanto na cultura a ser cultivada quanto no tipo de resíduo disponível. Dificilmente o produtor terá uma análise de uma cama de frango, por exemplo. O custo é elevado e não é qualquer laboratório que faz. No entanto, com base no material usado como cama de aviário, o total de ciclos em que ela foi utilizada e algumas outras informações, é possível fazer o cálculo da quantidade média de nitrogênio, fósforo e potássio presentes naquele resíduo. Com este dado, o técnico teria como orientar o produtor sobre a quantidade adequada a ser aplicada por hectare, representando risco ambiental baixo. Hoje, é muito comum no campo o uso de material orgânico sem levar em consideração o balanço de nutrientes.
Como é esta realidade em outros países?
Palhares – Países como Holanda, Dinamarca e Estados Unidos obrigam o produtor a anualmente apresentar ao órgão licenciador o balanço de nutrientes de sua propriedade. Isto inclui todos os possíveis resíduos de produção, acrescido inclusive dos fertilizantes químicos. O órgão licenciador é quem determina se ele pode aplicar o material no solo. Há situações mais drásticas, onde foi decretada moratória de produção. Existem experiências no mundo de locais em que é proibida a instalação de novas unidades de produção animal porque o ambiente não comporta mais. Outra situação existente é a limitação da quantidade de nutrientes aportados no solo. Na Comunidade Europeia, por exemplo, são 170 quilos de nitrogênio por hectare/ano. Independente do tipo de produção animal ou de quanto fertilizante químico seria utilizado.
Situações como esta podem se tornar realidade no Brasil?
Palhares – Se a lição de casa não for feita, pode acontecer. É preciso que o setor rural internalize esse manejo de nutrientes. Será a única forma de continuarmos a ter o solo como uma importante rota para manejar resíduos de uma forma segura e ambientalmente correta.
A entrevista foi publicada na edição 1232 de Avicultura Industrial.
Saiba como acessar a versão digital:
http://www.aviculturaindustrial.com.br/edicao/1232/20140507151019_Q_157