A possível confirmação do nome de Abilio Diniz para a presidência do conselho de administração da BRF tornará o empresário um caso único no mundo dos negócios, ao que tudo indica, a acumular a liderança do conselho de duas das maiores empresas do setor de consumo de um país – de um lado, a maior fabricante de alimentos e do outro, a maior rede de varejo, o Grupo Pão de Açúcar (GPA).
Pelo seu ineditismo, não há consenso de opiniões, tanto entre técnicos do direito como entre especialistas em governança corporativa e até entre investidores. Portanto é um assunto em aberto, com história e jurisprudência ainda a se construir.
Trata-se de nada mais nada menos que duas das 15 maiores companhias privadas brasileiras, em valor de mercado na BM&FBovespa.
São, ambas as empresas, as maiores em seus respectivos mercados e, por isso, possuem uma relação comercial importante, mas que ainda não foi publicamente quantificada por nenhuma delas.
Tudo que se sabe oficialmente, pelos documentos das empresas, é que BRF alega não ter nenhum cliente que concentre fatia igual ou superior a 10% de sua receita, bem como o mesmo diz o GPA sobre seus fornecedores.
Desde que os planos de Abilio se tornaram públicos, o sócio francês Casino, que hoje controla o GPA e com quem o empresário vive uma disputa há quase dois anos, alega que a sobreposição de funções colocaria o ex-controlador da maior rede brasileira de supermercados numa posição de conflito de interesses permanente.
Por isso, já pediu mais de uma vez que caso Abilio Diniz venha a ser eleito em BRF renuncie à presidência do conselho do GPA – o que ele já disse não ter planos de fazer.
Ao se apresentar como possível presidente de conselho da BRF, Abilio deu ao Cassino motivo para que o grupo francês colocasse o indesejável sócio brasileiro fora da importante posição que ocupa dentro do Gupo Pão de Açúcar.
Por trás dos argumentos, o que há de fato é uma disputa de valores, do quanto o empresário brasileiro quer por suas ações remanescentes e o quanto o controlador Casino, depois do desgaste do relacionamento, está disposto a pagar.
Antes de se ter certeza da eleição ou não de Abilio Diniz para a presidência do conselho da BRF, estabeleceu-se um intenso debate sobre se ele está ou não em posição de conflito de interesses e se isso torna inviável o plano de permanecer como presidente do conselho de ambas as empresas.
A situação, de tão inusitada, é difícil de ser objetiva e tecnicamente avaliada, do ponto de vista do direito societário. Faltam casos práticos equivalentes para que qualquer um dos lados possa apoiar suas opiniões.
Abilio Diniz, além de possível administrador, é também acionista das companhias.
No Grupo Pão de Açúcar, além de pertencer à família fundadora e ter comandado o processo de crescimento da empresa, foi cocontrolador com o Casino até junho de 2011.
O empresário tem atualmente, 20% das ações ordinárias e 10,4% das preferenciais, o que equivale a pouco menos de R$ 3,8 bilhões a preços de mercado.
Na BRF, começou a investir recentemente e possui menos de 5% da empresa – por isso, a informação de sua exata participação não é pública. Fala-se em algo entre R$ 800 milhões e R$ 1 bilhão.
O interesse econômico maior de Abilio, portanto, ainda está em GPA, a companhia que ajudou a construir ao lado do pai, Valentim dos Santos Diniz. O entusiamo, porém, está em BRF.
O tema conflito de interesses por si só já é dos mais controversos do direito das sociedades, com posições acirradas divergentes.
Soma-se ao ineditismo do caso e sua natural controvérsia, o fato de as principais bancas do direito estarem contratadas diretamente ou para fornecer pareceres pelo Casino e por Abilio. O Valor conversou com diversos especialistas do direito, envolvidos e não envolvidos com o caso.
De um lado, o grupo francês, conta em seu exército com serviços e opiniões de nomes como Trindade Advogados e Motta Fernandes Veiga – de dois ex-presidentes da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Marcelo Trindade e Luiz Leonardo Cantidiano.
O empresário brasileiro, por sua vez, tem avaliações e serviços de nomes como Carvalhosa & Eizirik Advogados – dos juristas Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik – e do Barbosa, Müssnich & Aragão. Para completar o quadro, Bocatter, Camargo, Costa e Silva Advogados atende à BRF e Souza Cescon, Barrieu & Flesh, ao Pão de Açúcar.
Abilio e Casino estão armados com pareceres defendendo suas teses e visões – apesar de todas parecerem pouco profundas, carentes de exemplos práticos. Há argumentações para todos os gostos. Daquelas que procuram “o espírito da lei” àquelas que dizem observar estritamente a “letra da lei”.
Os que defendem a liberdade de Abilio de escolher as duas empresas argumentam que sua atuação é via conselho de administração, um órgão de deliberação colegiada e que só aprova os temas por maioria. Portanto, ele não decide e muito menos executa nada sozinho. No GPA, o conselho tem 15 membros, na BRF, 10 – a nova chapa conta com 11 participantes. Além disso, destacam, na companhia de varejo, dada a disputa com o sócio controlador Casino, ele não tem mais nenhum poder relevante.
Já na BRF, o empresário, conhecido pela personalidade forte, terá de adotar um tom conciliador, pois se trata de uma empresa de capital pulverizado e sua indicação se deu pela aliança entre dois grandes acionistas o fundo de pensão Previ (Banco do Brasil) e a gestora de recursos, Tarpon – que somam 20% do capital total da empresa de alimentos.
Seu nome, porém, não foi unanimidade. Abilio não recebeu apoio nem da fundação Petros nem da Weg, com fatia diminuta, mas importância histórica na empresa, representada pelo empresário Décio da Silva – ambos preocupados com o tema do conflito de interesses. Após o início das discussões, a Petros ampliou sua fatia de 10% para pouco mais de 12%, e passou a Previ em maior acionista isolada.
O ponto central do debate jurídico a respeito da situação de Abilio é o parágrafo 3 do artigo 147 da Lei das Sociedades por Ações, que trata da eleição de conselheiro. (Veja quadro acima). Ele oferece espaço para muitas interpretações. Combinado a este, os interessados usam o artigo 155, que fala do dever de lealdade e ainda o 156, sobre o conflito de interesses.
Entre as poucas coisas sobre as quais se tem clareza nesse debate está o fato de a assembleia de acionistas das empresas ter a soberania sobre essa situação do conflito.
Se Abilio for eleito para ambas as empresas, será uma indicação de que os acionistas estão confortáveis com o tema. Eles têm o direito garantido pela lei (Confira o texto do artigo 147 acima) de fornecer ao empresário a dispensa para que exerça seu papel em ambas as companhias.
Há poucas opiniões isentas a respeito do tema e estão igualmente divididas a respeito da existência ou não de conflito impeditivo para Abilio assumir a posição em BRF e manter-se em GPA.
É raro, contudo, encontrar alguém – de especialistas do direito a investidores – que não veja, no mínimo, a necessidade de garantir que Abilio vai se abster de tratar de temas ligados à relação da BRF com as varejistas nacionais e os acordos comerciais com fornecedores, no GPA. Tudo indica que o empresário está disposto a evitar essas situações.
De um lado, há quem argumente que, diante da dificuldade de saber se há conflito de interesses entre GPA e BRF, do que dependeria o volume das relações comerciais, o simples fato de as sociedades “poderem ser consideradas concorrentes”, como diz a lei, colocaria o empresário em situação de impedimento. Essa concorrência viria da atuação do GPA em marcas próprias, ainda que seja pequena tal operação em seu todo e a carteira de produtos não seja completamente coincidente.
Do outro, há defesas que se atêm ao que diz a lei, pois o artigo 147 exige o acúmulo das duas situações: a participação em empresa possivelmente concorrente e em posição de conflito. Muitos leem a lei como se ela falasse em uma ou outra situação. Mas é fato que a redação fala da soma das situações.
Para alguns especialistas do direito, a reforma da Lei das S.As, em 2001, que adicionou o parágrafo 3 ao texto, quis justamente preservar as empresas de situações como essa que Abilio colocaria BRF e GPA. Assim, por se tratar de um conflito estrutural dada a relação comercial das empresas, o empresário teria dificuldade de manter o dever de lealdade simultaneamente às duas companhias. “Até a religião fala disso: é impossível servir a dois senhores ao mesmo tempo”, brincou um dos especialistas consultados.
Para o outro lado, tanto a lei admite a existência de conflitos que administra a questão ao exigir a abstenção da participação dos temas delicados, no artigo 156. Para a turma que alega a existência de um conflito permanente e insolúvel, o artigo foi feito para situações únicas e inesperadas, não para questões estruturais.
Também há argumentações de que Abilio, pessoalmente, não tem como se beneficiar pessoalmente nem na BRF e nem em GPA. Outros apontam que a ponta mais sensível dessa relação comercial, seja qual for sua extensão, é a do fornecedor.
Por fim, há ponderações de que como a exposição econômica do empresário em GPA é muito maior, o conflito – se houver – se dá em BRF.
Nos bastidores, uma guerra de forças está sendo travada. O desfecho dessa situação abrirá precedente – ainda que de uso raro – para outras situações desse tipo, já que até hoje não há registro de nada semelhante.