A presidente Dilma Rousseff foi uma das primeiras pessoas a reconhecer que a eleição do brasileiro Roberto Azevêdo para a direção-geral da Organização Mundial do Comércio não pode significar que a OMC passará a atender os desígnios do governo em Brasília. Mas há uma tarefa que Azevêdo, no novo posto, deve à política externa do Brasil: ele terá de provar que vale a pena dedicar à OMC grande parte dos esforços em matéria de política comercial, com o faz a diplomacia brasileira.
Azevêdo já começará, nos próximos dias, a acompanhar as atividades do atual diretor-geral, Pascal Lamy, na preparação da próxima reunião da OMC, em Bali na Indonésia, vista como oportunidade de tirar a instituição do limbo onde vem afundando. O brasileiro assume em setembro e a reunião se realiza em dezembro, com objetivos um tanto distintos da agenda de liberalização comercial lançada em 2001, com a chamada Rodada Doha de Desenvolvimento.
Em Bali, trata-se de buscar uma “colheita antecipada” de alguns acordos com maior chance de sair na empacada Rodada Doha. É uma mudança sensível em relação ao princípio combinado no começo das negociações, conhecido como “single undertaking”, pelo qual nenhum acerto poderia valer enquanto toda a negociação não estivesse terminada. O Brasil conseguiu, em 2005, por exemplo, um compromisso na OMC para se extinguir os subsídios à exportação de produtos. Até hoje a proposta espera o fim da Rodada Doha.
Brasileiro terá de buscar mais poder para a organização
Não depende só do diplomata brasileiro; mas se espera dele uma resposta à pergunta muito ouvida nas discussões sobre comércio internacional, especialmente em debates sobre a política comercial brasileira: ainda vale a pena apostar na OMC como meio de aumentar o comércio?
Azevêdo foi um dos diplomatas a garantir, em Genebra, um compromisso por essa “colheita antecipada”, na esperança de animar os países a continuar a negociação multilateral (assim chamada porque envolve todos os membros da OMC; não é bilateral, apenas entre dois países, nem plurilateral, limitada a um grupo). Para os diplomatas brasileiros, só no campo multilateral seriam possíveis alguns dos principais objetivos comerciais do Brasil, como o fim dos subsídios à agricultura que distorcem preços e dão vantagem desleal a produtos como laticínios europeus, por exemplo.
Em Bali, as expectativas se reduziram bastante. Do lado dos países desenvolvidos, a prioridade é negociar um acordo de “facilitação de comércio”, reduzindo barreiras burocráticas e técnicas ao trânsito de mercadorias. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o comércio global teria um aumento de 14,5%, e o PIB mundial, de 4,7%, se todos os países alcançassem metade da eficiência mostrada pelos governos mais competentes em facilitar o funcionamento das cadeias globais de suprimentos.
O Brasil e outros exportadores agrícolas têm, como um dos principais alvos em Bali, um acordo para regulamentar as cotas de importação; hoje países protecionistas concedem cotas mas tornam sua administração tão difícil que muitos exportadores têm dificuldades em aproveitá-las.
Uma das cascas de banana na negociação, para Azevêdo como diretor-geral da OMC e para o Brasil como interessado no sucesso da conferência de Bali, é a proposta de um “parceiro estratégico” brasileiro, a Índia, com outros 32 países importadores de alimentos, que querem mais liberdade na concessão de subsídios a seus produtores rurais, para enfrentar surtos de escassez de alimentos. A ideia é vista por especialistas como um retrocesso, por permitir a formação de estoques a serem despejados nos mercados a qualquer momento, distorcendo preços e mercados.
Figuras importantes na OMC já se perguntam se ainda faz sentido sustentar a instituição apoiando-se em sua agenda tradicional, concentrada, por exemplo, em itens como redução de tarifas de importação e controle de subsídios. As movimentações tectônicas nas políticas monetárias de países como o Japão e EUA alteram preços relativos e desmoralizam as tarifas como instrumento de controle. A emergência da China e outros países asiáticos famintos por matérias-primas elevaram preços de commodities e tornaram irrelevantes para os exportadores a competição dos subsídios agrícolas, pelo menos por enquanto.
É essa perda de importância relativa, somada à dificuldade de alcançar o consenso entre 159 países que compõem o heterogêneo grupo de sócios da OMC, que estimula a busca de acordos bilaterais e plurilaterais de comércio – onde países menores ganham mercados e as grandes potências impõem as regras de sua conveniência para comércio, investimento e propriedade intelectual.
O Brasil se beneficia do poder da OMC para julgar disputas comerciais, como mostra o caso vencido pelos brasileiros contra os subsídios aos produtores de algodão nos EUA. Nesse quesito, a OMC tem fortalecido sua capacidade de ação; até contratou vinte novos advogados especialistas no tema, nos últimos três meses.
Mas, para atrair os governos às discussões da OMC, seus dirigentes e os países interessados no multilateralismo – como o Brasil – terão de encontrar um novo fôlego para a organização. É preciso, entre outras iniciativas, aumentar a capacidade de intervenção da OMC em uma área onde vêm se concentrando as barreiras ao comércio, especialmente nos países ricos: a das regras técnicas, sanitárias e fito-sanitárias, entre outras.
Muitas dessas barreiras são invulneráveis a acordos de livre comércio realizados à margem da OMC. Algumas são até usadas para impor limites à abertura de mercados oferecida nesses acordos.
Azevêdo conseguiu, para ser eleito, mostrar que não será um funcionário de Brasília em Genebra, mas um especialista capaz de mover a agenda de comércio internacional. O governo brasileiro parece ter consciência disso, o que é um problema a menos para o novo diretor-geral, já mergulhado em desafios monumentais.
Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras
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