O maior projeto global para o desenvolvimento de uma fonte de energia por meio de fusão nuclear entrou numa fase crítica, com a chegada dos primeiros dos cerca de um milhão de componentes necessários para a construção de seu reator experimental.
O reator do chamado projeto Iter está sendo contruído no vilarejo de Saint-Paul-lès-Durance, na região da Provença, sul da França. Mas os trabalhos estão quase dois anos atrasados em relação ao cronograma original por conta de percalços e enormes aumentos nos custos.
A construção da edificação mais importante do projeto chegou a ser alterada para permitir a chegada, atrasada, de componentes-chave.
“Não estamos escondendo nada. É (uma situação) muito frustrante”, diz à BBC David Campbell, vice-diretor do projeto.
“Estamos fazendo tudo para recuperar o tempo (perdido) que for possível. Este projeto é inspirador o bastante para nos dar a energia de seguir em frente. Todos queremos ver a energia da fusão o mais rápido possível.”
Sonho antigo, desafios imensos – Após os problemas iniciais de design e dificuldades em coordenar um projeto internacional sem similares, agora há mais confiança quando ao cumprimento do cronograma.
Desde os anos 1950, a fusão nuclear oferece o sonho da energia praticamente inesgotável. O objetivo é recriar o processo que gera a energia do Sol, usando como combustível por duas formas de hidrogênio, os isótopos deutério e trítio.
O interesse no desenvolvimento desse tipo de processo se explica pelo uso de um combustível barato (os isótopos), pela pouco resíduo radiativo que produz e porque não emite gases do efeito estufa.
Mas os desafios técnicos, tanto de lidar com um processo tão extremo quanto de projetar formas de extrair energia dele, sempre foram imensos.
De tão difícil de ser recriada artificialmente, a fusão nuclear é sempre descrita como algo “que levará 30 anos” para ser concretizada.
Agora, o reator do Iter colocará isso à prova. Conhecido como “tokamak”, ele é baseado no JET, um projeto-piloto europeu, e prevê a criação de plasma superaquecido, com temperaturas de até 200 milhões de graus Celsius – calor suficiente para forçar os átomos de deutério e trítio a se fundir e liberar energia.
O processo deverá ocorrer dentro de um enorme campo magnético em formato de anel – a única forma como um calor tão extremo ser contido.
O JET conseguiu realizar reações de fusão em rompantes muito curtos, mas o processo exigiu mais energia do que foi capaz de produzir.
No Iter, o reator está em uma escala muito maior e foi projetado para gerar dez vezes mais energia (500 MW) do que consumirá.
O Iter combina o peso científico e político de países que representam mais da metade da população global, incluindo os da União Europeia (UE), que arca com quase a metade de seu custo, juntamente com China, Índia, Japão, Rússia, Coreia do Sul e EUA.
A maioria das contribuições não são monetárias: a UE, por exemplo, oferece a infraestrutura e as instalações. Por isso, o custo do projeto é incerto. O orçamento total é estimado em 15 bilhões de euros (cerca de R$ 45 bilhões).
Desavenças – Mas a estrutura do Iter causou desavenças e atrasos.
Cada um dos países participantes precisou criar uma agência doméstica para cuidar da aquisição de componentes; também houve divergências quanto a taxas de importação.
Disputas entre os países-membros quanto ao acesso aos locais de produção provocaram mais atrasos. Como cada parte tem especificações muito precisas, inspetores do Iter e de autoridades nucleares francesas tiveram de negociar visitas a empresas não acostumadas ao escrutínio externo.
O resultado é que, ainda que haja um cronograma para a entrega dos elementos-chave do processo, que chegam a pesar 600 toneladas, acredita-se que novos atrasos sejam inevitáveis.
Segundo o plano original, o primeiro plasma teria que ter sido criado na década passada. O novo prazo, de novembro de 2020, também já está sendo colocado em dúvida. Os gerentes do projeto do Iter dizem estar trabalhando dobrado para acelerar a construção.
Produção – “Nós agora começamos de verdade (a construção)”, diz Ken Blackler, coordenador da montagem do reator. “A produção industrial está em curso, e os cronogramas serão muito mais precisos.”
“Muitos dos desafios técnicos foram resolvidos. Mas o Iter é incrivelmente complicado. As peças estão sendo feitas no mundo inteiro. Temos de coordenar a chegada delas e juntá-las passo a passo, então todas tem que chegar na ordem certa – algo que é crítico.”
Além da sequência correta de chegada dos componentes, outra preocupação é que essas peças tenham qualidade adequada para o funcionamento do sistema.
Os 28 ímãs que criarão o campo que conterá o plasma têm de ser extremamente precisos. E a soldagem dos componentes terá de garantir um vácuo completo – sem o qual o plasma não poderá ser mantido. Qualquer falha pode colocar o projeto inteiro em risco.
Partindo do pressuposto de que o Iter consiga realizar uma fusão que gere mais energia do que consome, o passo seguinte será que os parceiros internacionais desenvolvam um projeto de demonstração da nova tecnologia – um teste para os componentes e sistemas necessários para a criação de um reator comercial.
Ironicamente, quanto mais o projeto progride, mais evidentes ficam os desafios de torná-lo viável comercialmente.
Em uma conferência na Bélgica, no ano passado, a BBC perguntou a um grupo de especialistas quando um reator comercial poderia estar pronto para gerar energia.
Alguns disseram que isso poderia ocorrer em 40 anos, mas a maioria estimou em mais 50 ou 60. O sonho da fusão nuclear está sendo buscado como nunca, mas torná-lo realidade é algo que levará muito mais do que 30 anos.