Seria uma cena comum em São Paulo. A cliente chega ao açougue, pede um quilo de contrafilé e sai com o pacote para preparar o almoço em casa. A diferença é que a cliente, com a cabeça coberta por um véu, faz o pedido em árabe. É assim nos poucos açougues que vendem carne halal no Pari, na região do Brás, onde vivem muitos muçulmanos que seguem à risca as regras religiosas do Alcorão.
Halal significa lícito em árabe. A palavra é usada para descrever os alimentos permitidos pelos códigos sanitários e religiosos islâmicos. Carnes de frango, boi e cordeiro são as mais apreciadas. O oposto é haram (pecado), que se refere a alimentos proibidos como carnes de porco, cães, elefantes, ursos, gatos e macacos; além de aves de rapina, insetos e anfíbios. Por haram, os muçulmanos entendem também os alimentos transgênicos ou cultivados com pesticidas. Bebidas alcóolicas são proibidas. Outros produtos, desde que respeitem as regras de higiene, são liberados.
Para ser considerada halal, a carne recebe cuidados especiais desde o abate do animal. O processo só pode ser executado por homens muçulmanos que ultrapassaram a puberdade. A cabeça do animal fica na direção da cidade sagrada de Meca, e ele é morto por um único e preciso corte, na jugular, com uma faca bem afiada. “Não pode haver qualquer tipo de tortura”, diz o libanês Mohamad El Youssef, de 51 anos. Junto com a mulher, Siham, ele gerencia há oito anos o açougue e restaurante Zellaya. Todas as terças-feiras, ele levanta às 4h30 e segue para um frigorífico na cidade de Socorro, a 140 quilômetros da capital, onde realiza o abate segundo os preceitos islâmicos. O ritual proíbe ainda que um animal assista à morte de outro, uma precaução para impedir a liberação de toxinas.
Antes do abate, deve-se dizer: “Em nome de Deus, Deus é maior”. Segundo Youssef, as palavras afirmam que a carne que será comida é uma oferenda feita a Alá. O animal é então pendurado, para que todo o sangue escorra para fora de seu corpo.
Os preços da carne halal vendida no açougue do casal variam de R$ 18 a R$ 30 por quilo. O contrafilé custa R$ 22. A casa vende 700 quilos de carne toda semana. O açougueiro afirma, com sotaque carregado, que poderia vender mais. “Há muitos árabes que não seguem a religião. Se fosse para todos, faltaria açougue.” Há 8 milhões de descendentes de árabes no país, mas menos de 28 mil declararam-se muçulmanos no censo de 2000. A Federação Islâmica do Brasil calcula em mais de 1 milhão de fiéis no país. Destes, cerca de 40% vivem no estado de São Paulo.
Embora pouco consumida na capital, a carne produzida no Brasil para alimentar os países árabes rendeu US$ 3,2 bilhões no ano passado, 19% a mais que em 2009, segundo Michel Alby, secretário-geral da Câmara de Comércio Árabe-brasileira. O frango responde por 70% do total exportado.
Há diferenças perceptíveis entre a carne halal e a do supermercado? “Eu não tenho ideia, porque só comi halal”, diz Siham, que prepara a comida no restaurante Zellaya. “É mais rápida para cozinhar, porque não solta tanta água, e o sabor é ótimo, não precisa de tempero”, diz a cozinheira Célia Alves. “E ela é um pouco adocicada.” Célia passou no açougue para preparar o almoço na casa da família árabe para quem trabalha. “Não precisa ser muçulmano para comprar os produtos halal”, diz Mohamad. Pratos árabes famosos entre os brasileiros também têm sua versão lícita. Há esfirras halal de carne e de zátar, um condimento árabe. Com o tamanho de um prato raso, a esfirra halal é usada como base de um sanduíche, com tomate, pepino, cebola, hortelã, rabanete ou limão. Para beber, chá quente em copos pequenos.
Além do ritual de preparo dos alimentos, os muçulmanos seguem uma etiqueta particular à mesa. Segundo a tradição, deve-se parar de comer um pouco antes de ficar satisfeito. “Um dos mandamentos do islã é controlar os instintos”, diz Paloma Awada, ex-funcionária de um frigorífico halal. Em muitas casas, é comum orar antes das refeições. Mas a religião não restringe o cardápio. “Se tem um prato que adoro é lasanha. E arroz e feijão também”, diz Paloma. Enquanto ela fala sobre os costumes culinários islâmicos, seu filho Yasser se delicia com uma esfirra.
Outra frequentadora do Zellaya, Fátima Garib estudou gastronomia e teve dificuldades nas aulas para seguir as regras do Alcorão. “Podia manusear a carne de porco, mas nada de encostar em bebidas, nem na garrafa”, diz. Seu trabalho de conclusão de curso foi uma homenagem à avó e à mãe: um livro com as receitas libanesas aprendidas na infância. E qual seria a delícia árabe que dona Siham gostaria de almoçar naquele dia? “Ah, uma macarronada!”