Imagine: às vésperas da visita do presidente americano, o ministro de Relações Exteriores brasileiro dá entrevista criticando indiretamente os EUA por não terem aproveitado o acordo negociado por Brasil e Turquia com o Irã; em seguida, a diplomacia brasileira decide abster-se no Conselho de Segurança em uma votação sobre o iminente ataque internacional à Líbia do ditador Muammar Gadafi – ataque lançado após sinal verde do presidente americano, concedido a partir do Brasil, no início da viagem ao país. Em seguida, o americano elogia o papel do Brasil como “parceiro estratégico global”.
Tudo isso aconteceu na semana passada. Para o futuro, os diplomatas brasileiros fazem pelo menos duas previsões surpreendentes: 1) nesta semana, quando o Conselho de Direitos Humanos votar uma condenação ao Irã, pela política discriminatória do país, o Brasil deve votar com os Estados Unidos, a menos que mudanças de última hora no texto negociado alterem os rumos das discussões nas Nações Unidas; 2) conforme disse o ministro de Relações Exteriores, Antônio Patriota, o governo americano já aceita que a normalização da situação em Honduras exige a volta a Tegucigalpa, como cidadão, do presidente deposto por um golpe, Manuel Zelaya.
“Os golpistas podem circular livremente em Tegucigalpa, mas a vitima do golpe, eleita pelo povo hondurenho, não pode voltar e exercer seus direitos em Honduras”, lamentou o ministro. Ele revelou que, nas conversas na Organização dos Estados Americanos para retirar a suspensão de Honduras da comunidade americana, a diplomacia dos EUA já tende a concordar que a volta de Zelaya, com seus direitos políticos restabelecidos, é um fator de normalização política.
A entrevista de Patriota emitiu vários sinais de que as mudanças na política externa brasileira não são a guinada que muitos acreditam ver a partir da nova ênfase adotada pelo governo Dilma Rousseff em questões de direitos humanos. Dilma, no fim de semana, foi explícita ao citar pontos de divergência entre os dois governos, entre eles o desconforto brasileiro com a política monetária americana, afrouxada na tentativa de reativar a economia e danosa para países como o Brasil, que veem, impotentes, suas moedas valorizarem-se e perderem muita competitividade em relação ao dólar.
Mas o próprio Obama se encarregou de minimizar os desentendimentos, ao falar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. “Como muitas nações, continuaremos a ter diferenças de opinião; mas estou aqui para dizer a vocês que o povo americano não só reconhece o sucesso do Brasil – nós batalhamos por ele”.
As palavras do presidente americano são, em parte, resposta ao crescimento da importância econômica do Brasil, um mercado de quase US$ 40 bilhões para mercadorias e serviços dos EUA que se expande, que mais que duplicou as compras de serviços americanos nos últimos oito anos, e que será, em 2015, a quinta maior fonte de turistas para os EUA.
Ao fazer uma inédita manifestação de “apreço” à candidatura do Brasil ao assento permanente do Conselho de Segurança dos Estados Unidos, Obama reflete, também, êxitos da política externa dos últimos anos, conduzida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim.
Não há, hoje, nenhum foro importante de decisão internacional que não conte com participação ativa do Brasil, do meio ambiente à crise financeira internacional – e, embora esse papel já fosse concedido em certa medida ao Brasil em governos anteriores, na gestão de Amorim, sob o governo Lula, a intervenção agressiva do Brasil foi decisiva para tomada (ou não) de decisões.
Após um “esfriamento” por divergências em relação ao Irã, como reconheceu o ministro Patriota, que defende até hoje a estratégia seguida opor Amorim para o programa nuclear iraniano, o governo Obama viu na eleição de Dilma a oportunidade de reatar em novas bases o relacionamento com o Brasil. Como ficou claro durante a visita do presidente Obama, o renitente crescimento econômico brasileiro serve, e muito, de estímulo a esse namoro.
É significativo, porém, que mesmo críticos severos da política externa sob Lula, como os ex-chanceleres Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer, hoje afirmam que o novo papel do Brasil no mundo, como protagonista, justifica a pretensão a um assento permanente no único órgão internacional com poder de conferir legitimidade a ações armadas entre países.
Segundo a colunista Dora Kramer, de “O Estado de S. Paulo”, Lafer, que no governo de Fernando Henrique Cardoso argumentava serem limitados os recursos de poder do Brasil para avançar muito agressivamente na arena global, agora atesta que o protagonismo do Brasil permite o acesso aos recursos conferidos pelo Conselho de Segurança. Lampreia, segundo Dora Kramer, disse que as prioridades do Brasil, antes “meramente econômico-comerciais”, agora se ajustam à agenda “prioritariamente político-militar” do Conselho.
As declarações dos dois experientes diplomatas, fontes influentes de boa parte das críticas à diplomacia do governo Lula, não são um endosso tardio à política externa de Celso Amorim, claro. Têm a ver, também, com a própria expansão dos interesses econômicos e populacionais brasileiros – relacionados, evidentemente, a políticas do governo, mas com dinâmica própria, nem sempre ligada á ação estatal.
A visita de Obama, o novo patamar das relações com os Estados Unidos, a maneira como a aspiração ao Conselho de Segurança deixou de parecer mera obsessão da diplomacia abrem caminho para uma revisão mais generosa e elogiosa da política externa recente. O novo tom adotado sobre direitos humanos e o cuidado com que Lula tem evitado manifestações públicas que, no passado, constrangeram sua própria diplomacia ajudam nessa revisão, que ainda está por ser feita.