Depois de nove anos gerando saldos positivos, o Brasil pode fechar 2010 com déficit na balança comercial. De janeiro até a segunda semana de março, o resultado foi positivo em US$ 809 milhões, mas as importações estão crescendo num ritmo mais acelerado que as exportações – 31,4%, face a 25,9%, segundo a média diária de saída e entrada de bens e serviços. O saldo em transações correntes, que entrou em território negativo no fim de 2007, tem sido crescentemente deficitário. O Banco Central (BC) projeta, para este ano, um déficit de US$ 40 bilhões, 64,3% maior que o de 2009.
Esse cenário de desaparecimento dos superávits comerciais e de crescimento “explosivo” do déficit em conta corrente foi antecipado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por conselheiros formais e informais, em abril de 2008. Na ocasião, o que se disse foi que, mantido o rumo da política econômica, o Brasil assistiria neste ou no próximo ano a uma crise no balanço de pagamentos, o mesmo tipo de turbulência que, no passado, abortara ciclos de crescimento e jogara o país em momentos de penúria e desesperança.
O objetivo dos conselheiros era, evidentemente, mudar as políticas cambial e monetária. Uma ideia ventilada foi copiar o modelo argentino, de fixação de uma meta (desvalorizada) para o câmbio. O apelo para convencer o presidente era político – “O senhor pode chegar ao ano da sucessão com o país em crise”, advertiram-no. Lula, ao seu estilo “em-time-que-está ganhando-não-se-mexe”, deixou o debate correr solto, mas não se moveu.
Afinal, o Brasil corre ou não o risco de sofrer uma crise no balanço de pagamentos? O economista Nilson Teixeira, do banco Credit Suisse, considera baixa essa probabilidade. Ele projeta para 2010 um déficit em transações correntes de US$ 53 bilhões (2,7% do PIB), incluído nessa conta um saldo comercial negativo de US$ 16,2 bilhões – trata-se de previsão, portanto, mais pessimista que a do BC. Para 2011, ele prevê déficit de US$ 80 bilhões, o equivalente a 3,6% do PIB – em 2009, o déficit foi de 1,5% do PIB.
Teixeira é um daqueles economistas classificados na categoria dos “chatos” (no bom sentido, claro). Para ele, não basta discutir conceitos. É preciso ir aos números, fazer contas, rodar modelos econométricos. Foi o que ele e sua equipe fizeram para concluir que, além de ser baixo o risco de o Brasil sofrer uma disrupção em 2010 e 2011, é igualmente reduzido o perigo de reversão do atual ciclo de crescimento, como consequência de um possível ajuste nas contas correntes.
Antes de mais nada, a comparação de alguns fundamentos do Brasil com os de países que experimentaram processos de reversão de déficits em conta corrente, acompanhados de forte contração do PIB, é favorável ao país. Em 1998-1999, quando viveu um processo dessa natureza, a Indonésia tinha dívida externa equivalente a 156% do PIB e reservas internacionais a apenas 12% do PIB. O país mantinha um regime de câmbio fixo e, como resultado do ajuste da conta corrente, viu seu PIB encolher 13,1% em 1998. Em 2000-2002, a Argentina acumulava dívida externa de 54% do PIB, com reservas de 9% do PIB. Então adepto do câmbio fixo, o país vizinho naufragou numa recessão que lhe subtraiu 10,9% do PIB em 2002. O Brasil tem hoje dívida externa e reservas equivalentes, respectivamente, a 10% e 13% do PIB.
Tem sido comum comparar a situação brasileira com a da Austrália, economia que, mesmo registrando constantes e elevados déficits em conta corrente, tem se mantido estável, praticamente imune a crises e com crescimento médio superior ao do seu clube (a OCDE). Teixeira e sua equipe estudaram as diferenças e concluíram que o Brasil tem posição confortável.
A Austrália financia seu déficit estrutural em transações correntes com endividamento externo. No primeiro semestre de 2009, seu passivo externo líquido, de 60,6% do PIB, estava assim distribuído: 52,9% diziam respeito à dívida externa e apenas 7,7%, a investimentos de estrangeiros em ações. Apesar da elevada despesa com juros da dívida, o risco associado ao financiamento do déficit é reduzido – a dívida soberana da Austrália, lembra Teixeira, é classificada como de baixíssimo risco pelas agências de rating. Obviamente, políticas fiscais e monetárias austeras adotadas pelo governo têm assegurado a confiança dos investidores.
Ao contrário do caso australiano, o passivo brasileiro é formado majoritariamente por ações e investimento estrangeiro direto (IED). Entre 2001 e 2009, a participação de IED e ações no passivo externo total saltou de 43% para 72%, enquanto o percentual de títulos de renda fixa e de empréstimos caiu de 55% para 27%. Esses números mostram que, na prática, o Brasil também está procurando conviver, de forma minimamente segura, com déficits estruturais em transações correntes.
Com o novo perfil de passivo externo, o peso das despesas com remessa de lucros e dividendos aumentou em relação às despesas com juros da dívida. Aplicando modelos econométricos, Teixeira e sua equipe constataram que, nos últimos anos, justamente quando ocorreu a mudança de perfil do passivo do país, verificou-se forte correlação entre despesas de transações correntes com atividade econômica e taxa de câmbio. Quando a demanda doméstica cresce, há uma expansão dessas despesas – por exemplo: uma multinacional instalada no país remete mais lucros e dividendos ao exterior. Na hipótese de uma depreciação da taxa de câmbio, há uma contração maior dessas despesas em relação ao que ocorria no passado – as importações ficam caras e diminuem, e as transnacionais lucram menos e, portanto, remetem menos ao exterior.
Para o economista-chefe do Credit Suisse, é baixa a probabilidade de um possível ajuste das contas externas provocar uma reversão abrupta do ciclo de crescimento iniciado no segundo trimestre de 2009. “Entendemos que, no Brasil, o regime de câmbio flutuante, a característica procíclica do déficit em transações correntes e a melhora dos indicadores de solvência externa, com aumento do nível de reservas internacionais, contração da dívida externa e diminuição dos pagamentos de juros, indicam que não é necessária uma elevada contração do produto para o equilíbrio do balanço de pagamentos em caso de crise externa”, diz ele.