Imagine que os produtores de alimentos no Brasil e no mundo teriam que pagar uma taxa para poder plantar, criar frangos e vacas leiteiras e até processar certos produtos. Esse salvo conduto para produzir decorre do objetivo de proteger o acesso aos recursos genéticos e o conhecimento de populações indígenas e tradicionais presentes na biodiversidade.
A idéia central é cobrar pelo acesso aos recursos genéticos – cana, soja, bovinos, suínos, frangos, dentre outros – uma vez que são originários de outros países. Esse assunto não é peça de ficção. Pelo contrário, é objeto de intensas negociações no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional do qual o Brasil faz parte desde 1994, e que terá reuniões no final de março e em outubro, quando se espera adotar um regime internacional para proteger e regular o acesso a recursos genéticos e promover a divisão dos benefícios oriundos dos mesmos.
Estima-se que apenas 10% da biodiversidade do bioma Amazônia seja conhecida. Conservar recursos genéticos de valor potencial ainda desconhecido e proteger o conhecimento de uma tribo indígena sobre recursos da biodiversidade é um dos focos da CDB e da criação desse regime conhecido, entre os negociadores, como ABS (Access and Benefit-sharing). No entanto, discute-se que a produção de soja, cana, carne bovina, suína e de frangos, frutas, algumas hortaliças e outros produtos e até seus derivados também deveriam entrar nesse regime, como forma de compartilhar os benefícios de sua utilização comercial com os países de origem desses recursos.
Gostaria de chamar a atenção para os possíveis impactos da inclusão de produtos alimentares nesse regime. Não existe uma metodologia para calcular esse “direito de produzir”, mas uma breve simulação indica números bastante elevados, uma vez que o Brasil depende de inúmeros recursos genéticos vindos de fora.
Tomando como base a produção de soja e cana-de-açúcar em 2009, e o valor de mercado da soja em grão, do açúcar e do etanol, e descontando 1% a título de contribuição ou repartição de benefícios, o valor devido seria de 447 milhões de dólares/ano. Considerando somente o total exportado de carne bovina, suína e de frangos em 2009, essa taxa chegaria a 111 milhões de dólares/ano, sem considerar o consumo interno.
Se o farelo de soja produzido em 2009 também for considerado, geraria uma taxa de 81 milhões de dólares/ano. Existe uma proposta para que os produtos derivados entrem nesse regime, o que elevaria exponencialmente esse número para mais de 558 milhões de dólares/ano, considerando somente o caso da cana, soja e carnes.
Imagine se leite, queijos, iogurtes, frutas, bioeletricidade gerada pela queima do bagaço e palha da cana, bioplásticos, dentre inúmeros produtos da agricultura de subsistência, dos assentados, do agricultor familiar, bem como do médio e grande produtor, tiverem que pagar essa taxa. Fatalmente os custos de produção e o preço dos alimentos iriam subir, prejudicando até a competitividade dos produtos agrícolas brasileiros, sem que isso seja necessário para proteger os objetivos em questão.
Vale lembrar que a cana-de-açúcar, originária do sudeste asiático há milhares de anos antes de Cristo, chegou ao Brasil em 1516, com os portugueses, que aproveitaram o solo e o clima para difundir a produção de açúcar e firmar sua presença nas terras recém descobertas. A soja, oriunda da China, chegou ao Brasil em 1882, vinda dos Estados Unidos. Em 1874, os primeiros bovinos da raça Ongole, de origem indiana, foram trazidos para o Brasil e mais tarde, após muita pesquisa para adaptação e melhoramento, originaram a raça Nelore. Trata-se de recursos genéticos há muito tempo utilizados e aprimorados.
O que se pretende com esse regime é conservar a biodiversidade e proteger o conhecimento das populações indígenas e locais. A resposta parece mais do que óbvia, mas cabe perguntar se para proteger esses recursos é preciso taxar do mesmo modo recursos genéticos alimentares, que são utilizados há milhares de anos? Uma das linhas propostas é que se dê um tratamento setorial diferenciado a esses recursos. Espero que o Brasil participe ativamente dessas negociações, buscando sempre proteger sua biodiversidade, mas também seu potencial agrícola, tão invejado mundo afora.
Rodrigo C. A. Lima é advogado, gerente-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).