Lançado pelo Banco Mundial ontem em São Paulo e em Miami, o relatório “Recursos Naturais na América Latina: Indo além das altas e baixas” questiona um diagnóstico que ganhou força e se transformou praticamente em dogma sobretudo a partir da década de 1970: a ideia de que a abundância de recursos naturais prejudica o crescimento econômico de um País ou região no longo prazo.
Conhecida como “a maldição das commodities”, esta conclusão, importante norteadora de investimentos, é colocada em xeque absoluta e relativamente. “A ‘maldição das commodities’, se existir, não é forte nem inevitável. As evidências preponderantes indicam que a riqueza em recursos naturais, em média, não prejudica nem promove desproporcionalmente o crescimento econômico”, conclui o relatório a partir de estudos na América Latina e outros países ricos em recursos naturais, inclusive do mundo desenvolvido.
O trabalho foi elaborado por três unidades do Banco Mundial na América Latina e no Caribe e é assinado pelos graduados economistas Emily sinnott, John Nash e Augusto de la Torre. Para o Brasil, que vive a febre do petróleo na camada pré-sal, tem vultosos aportes em mineração e espera se consolidar como o grande exportador de alimentos deste século, pode ser uma profícua mudança de paradigma.
Cabe realçar, porém, que o conceito de “maldição das commodities” se disseminou por experiências que o fortaleceram, o que significa que ninguém está livre dele. Riscos econômicos e políticos nesse sentido, portanto, permeiam o relatório. “A hipótese da maldição não pode ser ignorada”, disse Francisco Ferreira, economista-chefe adjunto do Banco Mundial para a América Latina e Caribe, no lançamento do estudo, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Mal administrada, uma forte dependência de recursos naturais pode gerar sintomas, por exemplo, do mal conhecido como “doença holandesa”, resultado da concentração de estruturas de produção e de exportação e com elevada dependência de receitas fiscais. Os preços das commodities em geral também são mais voláteis que a de produtos industrializados, o que pode provocar efeitos negativos sobre bem estar e investimentos – e, portanto, de crescimento econômico.
Nesse sentido, aponta o estudo, é preciso encarar as consequências da mais recente bonança de preços internacionais das commodities – de dezembro de 2001 a junho de 2008 – com cuidado. Particularmente na América Latina, esse cuidado deve ser ainda maior, já que em geral os países exportadores de commodities da região são menos dotados de recursos naturais per capita, mas dependem muito mais das receitas oriundas deles.
Como mostra o gráfico acima, a fatia dos recursos naturais nas exportações mundiais em geral tem diminuído, mas na América Latina e outras regiões consideradas emergentes esta redução tem sido menor. Para o setor de agronegócios no Brasil, este cenário transformou-se em argumento de pressão por políticas de apoio. Afinal, afirmam seus representantes, o superávit comercial do setor tem sido fundamental para a balança consolidada do País.
Ainda que alguma dependência de recursos naturais em si não seja necessariamente um problema, o relatório do Banco Mundial aponta alguns pontos que podem motivar preocupações na América Latina. Um deles é que os exportadores da região se concentram mais em um número menor de commodities, com uma variação de destinos ainda relativamente restrita.
O caso do Brasil foi citado por Nash, durante o evento de ontem, como um bom exemplo de diversificação. Afinal, citou, na década de 60 o café representava 53% das exportações totais do País e hoje sequer figura entre os produtos mais embarcados. Na contramão, está a Venezuela. Na década de 60, o petróleo respondia por 67% das exportações, e em 2006 o percentual era de 92%.
Outro alerta é que a fatia da América Latina e do Caribe nas exportações mundiais de muitas commodities é maior que o peso desses exportadores no PIB mundial. No Brasil, casos como o do minério de ferro e da soja enquadram-se no alerta.
Segundo o relatório, a mais recente bonança dos preços das commodities foi, para América Latina e Caribe, a mais duradoura e abrangente quanto à variedade de commodities afetadas e ao número de países beneficiados. O Banco Mundial destaca “que os preços do petróleo alcançaram ápices históricos, enquanto os preços dos metais estiveram mais altos que em qualquer outra época desde 1916”. Em contrapartida, “os preços das commodities agrícolas se mantiveram bem abaixo do pico da década de 1970”.
Com maior ou menor grau de diversificação, o relatório sustenta que a produção de commodities tem, sim, potencial para promover crescimento econômico no longo prazo, vide Noruega, Nova Zelândia e Canadá, países ricos que estão entre os grandes do mundo em capital natural. E que declarações como “o petróleo é o excremento do diabo”, do ex-ministro de Energia da Venezuela e fundador da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), Perez Alfonzo, podem ser questionadas – dependendo, é claro, de como se dá a governança dos recursos.
Sinal positivo para países que dependem de commodities é que as tendências de produtividade nesse campo têm sido tão boas quanto em outros setores. Além disso, a produção de commodities, quando bem administrada, é capaz de gerar externalidades e ligações para outros setores, além de fartas rendas econômicas – e aqui a ameaça da já citada “doença holandesa” aparece com todas as duas cores, especialmente quando os recursos são esgotáveis como minerais e hidrocarbonetos.
Portanto, pondera o banco, um país dependente de recursos naturais deve diversificar sua matriz produtiva e melhorar a gestão de suas receitas públicas para que, como isso, consiga estabelecer uma qualidade institucional capaz de maximizar vantagens e diluir riscos. “Os recursos naturais podem envenenar as instituições e a debilidade institucional pode, por seu turno, abalar o crescimento”, afirma o estudo.
Outro ponto importante, que diferencia países ricos em recursos naturais entre si, é a participação privada nas cadeias de commodities. Conforme o relatório, prudência e planejamentos eficientes de longo prazo são, em tese, qualidades alcançadas com mais facilidade “em ambientes nos quais prosperam empresas privadas”. Na América Latina e no Caribe, diz o estudo, o rápido salto das receitas com commodities nas bonanças tem se refletido em expansões fiscais – e há casos de gastos subindo mais do que as receitas.
Com gastos públicos ineficientes na bonança, o produto da equação pode ser um nível de endividamento crescente que, entre outros reflexos, pode resultar na apreciação das taxas de câmbio reais – daí porque o Banco Mundial sugere metas fiscais com ajustamento cíclico, fundos de estabilização e câmbio flexível aos países que lidam com a volatilidade das cotações das commodities.
Os custos sociais e ambientais da intensiva exploração de recursos naturais não passaram despercebidos no estudo. Há consequências negativas e elas podem ser exacerbadas por subsídios que estimulam a exploração abusiva de recursos hídricos e o uso excessivo de produtos químicos. A aquisição de terras de agricultores por investidores, crescente no Brasil atual e recentemente limitada pelo governo, também pode gerar tensões. Para o Banco Mundial, são alertas que podem diferenciar uma benção de uma maldição.