A defesa da paz é uma agenda enraizada na tradição da diplomacia brasileira, traduzindo-se nos últimos anos num crescente esforço de cooperação para pavimentar aquele que é um dos requisitos incontornáveis dessa bandeira: a luta contra a fome. Esse compromisso tem modelado o rosto do País no plano mundial.
Quem melhor sintetizou esse enfoque da paz foi o primeiro diretor-geral da FAO, o escocês Sir John Boyd Orr (1880-1971). Em 1949, quando a reconstrução do pós-guerra erguia um canteiro de obras no planeta, Orr resumiu sua visão das prioridades em jogo em uma frase: “Não se constrói a paz com estômagos vazios”.
Passados 61 anos, a pertinência dessa ordenação continua válida num mundo onde o ronco da fome ecoa de um bilhão de estômagos vazios. A África subsaariana compõe um dos naipes mais dramáticos dessa orquestração: a região reúne 212 milhões de subnutridos. Mais que uma referência funesta, porém, poderá emergir da África o paradigma bem sucedido de um novo modelo internacional de cooperação para a segurança alimentar.
O Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, Combate à Fome e Desenvolvimento Rural, promovido em maio pelo governo brasileiro, aponta nessa direção. Trata-se de um desdobramento da decisão anunciada pelo presidente Lula na sede da FAO, em Roma, durante a Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar realizada em novembro de 2009, de ajudar países africanos a desenvolver suas próprias versões da estratégia Fome Zero, o programa que inscreveu a segurança alimentar no topo da agenda do Estado brasileiro. Desde então, o País figura mundialmente como um modelo de sucesso na luta contra a fome.
A superação da fome não é apenas uma questão de sobrevivência biológica, mas um requisito de emancipação social. Como disse o presidente Lula ao abrir o Diálogo Brasil-África, “quem tem fome não pensa; a dor do estômago é maior do que muita gente imagina. E as pessoas que têm fome não viram revolucionárias, elas se tornam submissas, pedintes, dependentes. Portanto, a fome não faz o guerreiro que nós gostaríamos que fizesse. A fome faz um ser humano subserviente, humilhado”.
A exemplo do que implantou internamente, o Brasil quer levar à África esse conceito de segurança alimentar associado à expansão da oferta local. Para isso se dispõe a transferir tecnologia da Embrapa maciçamente, de modo a elevar a produtividade da agricultura africana em diferentes escalas.
O escritório da Embrapa instalado em Gana já prospectou projetos em mais de duas dezenas de países do continente. Resultados atestam convergências agrícolas e climáticas encorajadoras com o bioma dos Cerrados brasileiros, o que facilitará as adaptações de sementes, manejo e máquinas. Conhecimentos acumulados durante décadas poderão ser reaproveitados por agricultores locais, tanto na produção de alimentos, quanto em projetos de bioenergia, encurtando um longo e caro percurso de evolução linear.
No encontro de Brasília, do qual participaram 45 delegações africanas, o diretor-geral da FAO, Jaques Diouf e representantes de outras organizações internacionais, o presidente Lula manifestou a disposição de estender essa parceria ao crédito, abrindo linhas de financiamento do BNDES para produtores africanos poderem adquirir pequenos tratores e implementos, em condições equivalentes às do programa “Mais Alimentos”, que já propiciou a compra de 25 mil tratores pela agricultura familiar brasileira desde 2008.
Assim como não é propósito do Brasil engrossar a velha tradição da ajuda internacional que destrói a agricultura dos países pobres ao condicionar recursos a importações de alimentos subsidiados dos credores, também não há qualquer pretensão hegemônica ou risco neocolonial nessa atenção com a África. Ao contrário. Ancorado em uma das maiores fronteiras agrícolas do planeta, o interesse brasileiro decorre da certeza de que os desafios da paz, do comércio, do clima e da segurança alimentar só serão equacionados de forma satisfatória se predominar a lógica da cooperação multilateral.
É esse modelo que estreita laços e amplia escalas, compartilhando mercados e vocações, como é o caso da produção de biocombustíveis, que o Brasil está introduzindo na agenda internacional da luta contra a fome, quando se dispõe a multiplicar a difusão de tecnologia, estender linhas de crédito e repassar experiências bem sucedidas, como é o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), testado em 10 países africanos para estreitar vínculos entre produtores e demandas institucionais.
A qualidade da cooperação brasileira guarda estreita sintonia com a forte preocupação da FAO de devolver aos governos a responsabilidade por garantir o direito à alimentação de seus povos. Essa é uma tarefa intransferível e ela explica o interesse da FAO, reafirmado em Brasília pelo seu diretor-geral Jacques Diouf, de contribuir para a implementação dessa iniciativa de Cooperação Sul-Sul.
O fato é que a retração do comércio e a crescente instabilidade financeira decorrentes da crise mundial jogaram a pá de cal em certos paradigmas incompatíveis com o conceito de segurança alimentar. A terceirização do abastecimento local à oferta “just-in-time” dos mercados globalizados é um deles. O outro, a suposição – contestada pela redução da ajuda internacional – de que 1bilhão de subnutridos no planeta poderão sobreviver indefinidamente com ajuda emergencial que, ademais de incerta, inocula o ciclo vicioso de dependência quando dissociada de investimentos produtivos.
Ainda que a ajuda continue necessária em situações extremadas, é imperativo devolver à agricultura, sobretudo à agricultura familiar por sua capilaridade econômica e social, a centralidade que lhe cabe no processo de desenvolvimento. Essa reconstrução de agendas e fundamentos foi consagrada na cúpula da FAO, em novembro, em Roma e ganhou contornos mais definidos nas conferências regionais da FAO para América Latina e Caribe e África, realizadas em abril e maio de 2010.
No horizonte da cooperação Brasil-África ela ganha agora um ponto de apoio promissor, capaz de remover dinâmicas esgotadas e erguer pilares da nova ponte entre a paz e a segurança alimentar no século XXI.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.