Ainda é considerável o contencioso jurídico e constitucional do Brasil, mesmo decorridos 23 anos desde a promulgação da Constituição de 1988. A Carta sepultou o regime de exceção instituído em 1964 pelo poder militar, fonte de um tratamento autoritário imposto a praticamente todos os setores do país, que obrigou os constituintes a redesenhar o perfil legal do Estado brasileiro para adequá-lo aos ventos da democracia.
Nessa corrida pela sincronização da agenda nacional com a nova realidade do país, a Constituição avalizou, em sua maioria, movimentos de restauração de direitos inalienáveis da sociedade. Não poderia ser diferente. Mas também deu abrigo a anacrônicas ações de “reparo” de supostas prerrogativas, reclamadas por grupos de pressão guiados por uma plataforma em que sobressaem palavras de ordem de “defesa de minorias” ou de obediência a princípios genericamente reunidos na bem sonante classificação de “politicamente correto”.
A discussão sobre o reconhecimento de supostos quilombos, pressuposto para a regulamentação fundiária de comunidades ocupadas por autoalegados descendentes de escravos, é exemplo desse tipo de imbróglio jurídico, em tese resolvido pela Carta de 1988. Na verdade, em vez de dar-lhe termos definitivos, a consolidação na lei de direitos reivindicados por chamados quilombolas teve o efeito de criar mais confusão em torno de uma demanda que se arrasta por décadas.
Legalmente, a questão está tratada em Ato das Disposições Transitórias (artigo 68) da Constituição. O texto estabelece que “aos remanescentes das comunidades de quilombos ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Em 2003, na esteira de uma série de medidas na linha “politicamente correta” que marcou a chegada do PT ao Planalto, o então presidente Lula assinou o Decreto 4.887, que define os remanescentes de quilombos como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Por seus termos vagos e por atribuir aos próprios quilombolas o direito de se autodefinir como tal, sem qualquer outro tipo de comprovação, o decreto tirou o tema do foco jurídico para jogá-lo no conveniente ringue da ideologia. Além disso, deu ao Executivo o poder de desapropriar terras, inclusive privadas, para fazer as titulações.
A questão tem importância vital, até para a segurança nacional. Entre as áreas reclamadas pelos quilombolas estão a Base de Alcântara (MA), local estratégico para o lançamento de foguetes, e a Restinga da Marambaia, no Rio, preservada da ocupação desordenada e da favelização por conta da presença da Marinha. Desde 1995, já foram emitidos títulos de posse para mais de 11 mil famílias, beneficiadas por desapropriações que somam quase 10 mil quilômetros quadrados de terras, particulares incluídas. Processos em curso envolvem outras 25 mil famílias – e uma extensão territorial de 19.500 quilômetros quadrados (quase um Sergipe) – reclamados por supostos quilombolas.
Complexa, a discussão não foi esgotada pela legislação. Isso levou o DEM a entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto 4.887. O assunto está na pauta do Supremo Tribunal Federal, prestes a ser analisado. Caberá à Corte, blindada contra a ação de grupos de pressão e ao largo de interesses ideológicos, analisar o tema e dar-lhe o mais acertado encaminhamento.