Por Humberto Luis Marques
A bioacessibilidade é uma metodologia in vitro (ensaio laboratorial) que simula a digestão humana com o objetivo de estimar qual fração de um alimento fica disponível para absorção pelo organismo, ou seja, o que de fato pode ser aproveitado em termos de nutrientes a partir dos alimentos que comemos. Há também ensaios de bioacessibilidade para espécies como cães, aves e mamíferos no intuito de melhorar a nutrição desses animais. “É importante popularizar esses conceitos e gerar informações a respeito da bioacessibilidade em alimentos. Além de trazer benefícios à saúde humana e conscientizar o consumidor sobre sua alimentação, essa ferramenta já está substituindo o uso de animais de laboratório nas pesquisas, o que é muito positivo por questões éticas e de respeito aos animais, além de trazer agilidade experimental e redução de custos”, explica Fabíola Helena dos Santos Fogaça, pesquisadora do Laboratório de Bioacessibilidade da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
A bioacessibilidade é mensurada no teor dos nutrientes, como vitaminas e minerais; compostos bioativos (polifenóis, carotenoides), aminoácidos, ácidos graxos, etc., que é liberada da matriz alimentar e que se torna disponível para o organismo. Segundo Fabíola, ela pode variar de organismo para organismo, porém, a metodologia é baseada na digestão de uma pessoa saudável, e por isso, pode ser estimada para a população em geral.
A forma de preparo dos alimentos também influencia na bioacessibilidade. Certos nutrientes, como o ferro, têm maior bioacessibilidade em alimentos cozidos quando comparados aos alimentos crus. “Isso quer dizer que o preparo culinário pode afetar a bioacessibilidade, e por consequente, a absorção de nutrientes. O mesmo alimento produzido em diferentes locais pode conter diferentes concentrações de nutrientes, e por isso, pode ter sua bioacessibilidade alterada”, explica a pesquisadora.
Alimentos preparados em diferentes formas de cocção (cozido, assado, grelhado, frito) tem sua bioacessibilidade afetada. Alguns estudos demonstram essa afirmação. Cozinhar e fritar o atum, por exemplo, pode reduzir de 40% a 60% a bioacessibilidade do mercúrio. O cozimento de amostras de fígado bovino sob vácuo (no processo chamado de Sous vide) pode levar ao aumento no nível da bioacessibilidade de cálcio, cobre, ferro e magnésio. O cozimento em água da carne bovina pode elevar em 30% a bioacessibilidade do ferro, enquanto a cocção em grelha ou forno a 180ºC equivalem a bioacessibilidade do ferro na carne bovina crua (apenas 19%). O efeito do cozimento como promotor de maior bioacessibilidade de minerais não foi observado para peito de frango ou carne suína, segundo relata Fabíola.
FERRAMENTA PARA A INDÚSTRIA DE ALIMENTOS
Em proteína animal, há diversos trabalhos com bioacessibilidade de contaminantes em pescado. No entanto, como aponta Fabíola, existem poucos estudos relacionados à bioacessibilidade de nutrientes em carnes. Recentes pesquisas determinaram uma bioacessibilidade da proteína – ou seja, o quanto digerimos das carnes – de 89% para cortes bovinos e suínos cozidos, de 100% para o frango cozido e de 70% para filés de peixe. “Com relação aos nutrientes, os estudos ainda são insipientes e não podemos concluir que exista uma carne melhor em termos de bioacessibilidade de nutrientes”, afirma a pesquisadora.
Um único estudo desenvolvido pelo Brasil em 2017 demonstrou que a carne bovina apresenta, em média, uma bioacessibilidade 20% maior para o cálcio, ferro e magnésio quando comparada a outras carnes, porém, de acordo com Fabíola, esses resultados devem ser replicados em outras localidades e repetidos para se calcular uma correlação positiva entre a composição dos nutrientes em carnes e sua bioacessibilidade.
Para a indústria essa metodologia é uma ótima ferramenta, indica a pesquisadora da Embrapa. Segundo explica, ela pode fornecer informações estimadas sobre a quantidade realmente disponível de nutrientes e compostos bioativos nos alimentos e propor recomendações de consumo (técnicas de preparo e porções) que realmente causem benefícios à saúde humana. “Podem calcular melhor as porcentagens de inclusão de aditivos e compostos funcionais nos produtos, como por exemplo, naqueles enriquecidos com antioxidantes ou com probióticos, obtendo seu efeito benéfico e duradouro”, afirma. Além disso, podem ajustar a linha de produção dos alimentos, de modo a desenvolverem alimentos mais saudáveis e nutritivos E, sob a ótica da pesquisa, podem ter o apoio dos ensaios de bioacessibilidade nos testes de produtos, buscando sempre maior qualidade nos alimentos e maior beneficio ao consumidor. “No caso da indústria de carnes, poderiam associar a dieta dos animais ao conteúdo de nutrientes nas carnes, proporcionando nutrição e saúde aos consumidores”, ressalta Fabíola.
CRESCIMENTO DAS PESQUISAS NO BRASIL
O número de estudos de bioacessibilidade ainda é pequeno no Brasil. Segundo a pesquisadora da Embrapa, as pesquisas brasileiras envolvem a bioacessibilidade de compostos bioativos (principalmente carotenoides) e minerais em frutas, castanhas e legumes. Em proteína animal, há apenas quatro trabalhos com foco na bioacessibilidade de minerais como ferro em carne bovina, suína, de aves e pescado e, somente dois, com leite bovino e caprino.
A metodologia aplicada às pesquisas foi desenvolvida na Europa como uma ferramenta de apoio a estudos clínicos relacionados aos alimentos e seus benefícios à saúde humana e a questões toxicológicas (principalmente com relação à presença de contaminantes em alimentos). Os países percursores foram Bélgica e Holanda, mas atualmente há importantes grupos de pesquisa em Portugal, Espanha e França, além de pesquisadores bem atuantes na China. “A bioacessibilidade está muito difundida pelo mundo, sendo considerada robusta o suficiente para fornecer informações à sociedade”, ressalta Fabíola.
No Brasil, há vários grupos trabalhando com essa metodologia, mas ainda em quantidade menor do que na Europa. No entanto, os pesquisadores brasileiros usam os mesmos métodos e trabalham com equipamentos similares para a condução dos ensaios. Dessa forma, de acordo com Fabíola, geram resultados promissores e comparáveis entre os grupos de estudo, uma vez que já há um consenso internacional do método a ser utilizado. “A Embrapa está nesse grupo e pretende fortalecer sua equipe para fomentar pesquisas na área de alimentos”, diz.
AUXÍLIO À SAÚDE HUMANA
Para a pesquisadora, a bioacessibilidade gera diversas vantagens para a sociedade como um todo. Além de ser uma ferramenta de baixo custo e rápida, ela apresenta replicabilidade, ou seja, pode ser repetida em diferentes locais ao mesmo tempo. Com isso, geram informações importantes sobre os alimentos, como eles são digeridos e quais compostos permanecem no organismo e podem ser absorvidos, nutrindo ou causando doenças às pessoas. “Quando se recomenda o consumo de vegetais verdes para a ingestão de ferro, por meio da bioacessibilidade, pode-se calcular a quantidade exata de ferro que cada alimento fornecerá na realidade ao seu consumidor”, explica Fabíola.
Da mesma maneira, segundo a pesquisadora, a ingestão de alimentos contendo resíduos de contaminantes poderá ser melhor avaliada se a bioacessibilidade for considerada nos cálculos de porções de ingestão diária tolerável. “Hoje já é possível, inclusive, modelar os efeitos desses alimentos na microbiota humana, ou seja, avaliar os efeitos dos alimentos funcionais no intestino, órgão que teve sua relação com o sistema nervoso comprovada em diversos estudos”, explica.
Hoje, não é possível ainda estabelecer dietas a partir das informações geradas pela bioacessibilidade. Porém, já é possível modificar alguns hábitos alimentares com base nos resultados dessa metodologia. Fabíola exemplifica citando que alimentos crus são ótimas fontes de fibra e vitaminas, mas um equilíbrio entre a ingestão de vegetais crus e cozidos pode proporcionar maior disponibilidade de minerais aos consumidores. Ressalta ainda que as carnes são excelentes fontes de nutrientes, e devem fazer parte dessa dieta equilibrada. “Alguns alimentos como o peixe podem conter metais pesados como mercúrio, cuja bioacessibilidade diminui com o cozimento, por isso, é possível dar preferência a peixes cozidos do que crus”, alerta.
Recentemente, a equipe do Laboratório de Bioacessibilidade da Embrapa Agroindústria de Alimentos integrou-se a um grande projeto nacional ligado à cadeia produtiva do pescado, o BRS Aqua, o maior na área de pesquisa em aquicultura já realizado no País e que visa o desenvolvimento da atividade. O projeto envolve 22 Centros de Pesquisa, 50 parceiros públicos e 11 empresas privadas e tem financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O laboratório foi criado em 2016 e, desde então, vem trabalhando principalmente em análises de bioacessibilidade para avaliação de frutas da biodiversidade brasileira e resíduos agroindústrias.