A superposição de crises globais que disparou o preço dos alimentos abre uma oportunidade para a América Latina, que deve ver a conjuntura como um ponto de partida para a transformação de suas zonas rurais.
Assim entende o empresário agropecuário, engenheiro agrônomo e consultor internacional Gustavo Grobocopatel, que visitou a sede do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), em São José, Costa Rica, e foi protagonista de um diálogo sobre o presente e o futuro da produção alimentar com o Diretor Geral do organismo, Manuel Otero.
A conversa foi transmitida por streaming e contou com a assistência e a participação ativa virtualmente de jornalistas de países de todo o continente com reconhecida trajetória no setor.
“A América Latina é extraordinária em muitos aspectos. Há abundância de água e de terra, e há uma tradição cultural, pois as pessoas sabem trabalhar no campo. Essas coisas não existem em outros lugares do mundo. Este continente possui um potencial produtivo cinco ou seis vezes maior do que o atual”, disse Grobocopatel, que considerou que os problemas gerados pela pandemia de Covid-19, a recorrência de eventos climáticos extremos e o conflito bélico no Leste Europeu acelerarão as mudanças que já estavam acontecendo na agricultura.
“Os problemas da globalização devem ser combatidos com ferramentas da globalização. Uma é a regionalização: se queremos ter peso no mundo, devemos fazer isso juntos. Os países da América Latina e do Caribe não podem estar separados para enfrentar a complexidade daquilo que está vindo: há uma nova convergência tecnológica relacionada à robótica, à Internet das coisas ou à nanotecnologia, e que mudará a forma de fazer agricultura”, previu Grobocopatel, que foi fundador da Câmara Argentina de Biotecnologia e do Grupo Los Grobo e tem assessorado diversos governos.
Autodefinido como um empreendedor, esse promotor do plantio direto, o qual considera uma ferramenta para cuidar a saúde do solo, está convencido de que uma das transformações a serem produzidas será o crescimento da bioeconomia, entendida como um modelo de industrialização do biológico. “Hoje — explicou —, sabemos que a fotossíntese não só produz as plantas que servem como alimento, mas também como energia, como roupas ou como remédios”.
Neste sentido, considerou que a atual crise de disponibilidade e preços de fertilizantes químicos, de cuja importação a América Latina é fortemente dependente, ajudará também a fazer mudanças positivas nesse item: “Na busca por ser mais eficientes no uso de nutrientes, que significa encontrar a contribuição ideal para cada tipo de ambiente, teremos uma agricultura de mais bioinsumos. Daqui a cinco ou dez anos a nossa produção estará baseada em biofertilizantes e produtos fitossanitários biológicos. E isso é muito bom”.
A necessidade de uma parceria continental
No diálogo, Manuel Otero deu detalhes de sua recente participação na Cúpula das Américas, em que clamou pela constituição de uma parceria continental para enfrentar a crescente insegurança alimentar. “Hoje a segurança alimentar está no topo da agenda mundial, e diversos países do continente estão lançando planos nacionais para conter a crise, com medidas concretas para ajudar os mais vulneráveis. Na Cúpula, destacamos que, nesse cenário, deve ter financiamento para produtores e um reforço do diálogo público-privado para resolver a crise dos fertilizantes, sabendo que países como a Argentina e o Brasil importam a maior parte do que utilizam”.
Neste sentido, Grobocopatel valorizou o papel do IICA, ao qual definiu como “uma casa que se sente como sua”.
“O IICA — apontou — desempenha um papel muito importante e pode liderar as agendas de integração regional e de transformação como nenhum outro organismo, pela legitimidade que tem no continente. Deve liderar o debate sobre o futuro da agricultura e canalizar a discussão pública”.
Quanto às urgências propostas pela atual conjuntura, o empresário afirmou que o propósito fundamental dos governos deve ser proteger as populações mais vulneráveis: “Diante do aumento de preços de alimentos, a prioridade deve ser ajudar a quem não sabe se comerá essa noite. Os Estados devem atuar com subsídios e outros mecanismos de compensação. Essa é uma grande crise de oferta de grãos. Geralmente temos crises de oferta vinculadas a intempéries, que são resolvidas rapidamente, mas nesse caso não sabemos quanto tempo vai durar nem como terminará, embora esteja confiante de que será resolvida mais rápido do que pensamos, se não cometermos erros que às vezes atrasam as soluções”.
Grobocopatel também mencionou o debate sobre como produzir mais alimentos que sejam mais saudáveis com a menor utilização possível de recursos naturais e advertiu que a agricultura não pode se separar da questão ambiental.
“O ambiental está no corpo e na alma da agricultura. Não será possível resolver nenhum dos desafios da produção, se esse processo não falar o mesmo idioma do ambiente e não incluir o social”, enfatizou.
“O ambiental e o social — acrescentou — fazem parte de qualquer discussão e o que tornarão o processo sustentável. A América Latina, em termos ambientais, tem feito muito. Por exemplo, incorporou o ordenamento territorial, para saber o que fazer e onde fazer. Claro que minha visão também não é ingênua, e sei que existem problemas, como o desmatamento e a gestão de resíduos químicos. E temos um problema grave, que é o fato de muitas pessoas ficarem fora do sistema. A transformação que se aproxima só será positiva se conseguirmos fazê-la com políticas públicas que incluam e eduquem”.
Otero considerou, na mesma linha, que devem existir políticas públicas destinadas a atrair as novas gerações, para que vejam que a nova agricultura é um verdadeiro campo de oportunidades.
“O IICA — ressaltou — tem no centro de sua agenda a ciência e a tecnologia, que já estão transformando a agricultura. São as ferramentas que romperão as barreiras que separam o rural do urbano e atrairão os jovens”.
Grobocopatel concordou com o conceito quando apontou que os jovens se envolverão na agricultura “conforme o campo seja desafiador no âmbito trabalhista e humano e ofereça outra forma de vida. A tecnologia e a digitalização estão chamando as novas gerações para trabalhar no campo, e por isso deve ocorrer uma mudança de comando na gestão agrícola”.