Em tempos de safra, a usina de Origny Sainte-Benoîte recebe 20 mil toneladas de beterraba por dia. As raízes chegam das fazendas dos agricultores que são sócios da cooperativa. A primeira etapa é uma lavagem caprichada do produto.
Depois do banho, as beterrabas são levadas para dentro da usina. Quase toda a fabricação do açúcar ocorre em equipamentos fechados. Numa máquina, a beterraba é cortada em tiras finas e compridas. O material segue por esteiras e é levado para um esse grande tambor giratório.
Uma corrente de água quente entra em contato com as tiras de beterraba. Aos poucos, a água absorve o açúcar das raízes e do tambor sai um suco bem doce, que é a base para a fabricação do açúcar. Na sequência, o suco beterraba é bombeado pra enormes tonéis. Dentro deles, com temperaturas elevadas, ocorre a formação dos cristais de açúcar.
No final da cristalização, já dá pra ver o açúcar de beterraba, totalmente branco. Atualmente, 80% da produção das usinas francesas é vendida pras indústrias de alimentos, que usam o produto em biscoitos, massas, bolos. Os outros 20% viram açúcar de mesa, que na França é tradicionalmente consumido em cubinhos.
O gosto é igual ao do açúcar de cana. “São dois produtos à base de sacarose. O açúcar refinado de cana é equivalente ao de beterraba”, explica Philippe Pelzer, diretor de comunicação da Tereos.
Apesar da semelhança de sabor e de visual, o custo de produção diferencia muito os dois produtos. Para fazer uma tonelada de açúcar refinado de beterraba, os franceses têm um custo equivalente a R$ 1.100. Já o mesmo tipo de açúcar, saindo de uma usina de cana do Brasil, custa aproximadamente a metade desse valor. Além de ser mais barato, o nosso açúcar é produzido em quantidades muito maiores.
Os países da União Européia cultivam juntos 1,4 milhão hectares de beterraba, contam com 106 usinas em atividade e produzem 14 milhões toneladas de açúcar por ano. Já o Brasil, sozinho, tem oito milhões de hectares de cana, 440 usinas em operação e fabrica anualmente 38 milhões toneladas de açúcar. É o maior produtor e o maior exportador mundial do produto. Esta superioridade incomoda e gera conflitos.
Éric Lainé, presidente da Confederação Nacional dos Produtores de Beterraba, entidade que representa agricultores e usineiros do país fala sobre esta desigualdade. “Atualmente, não temos condição de competir de igual pra igual com o Brasil. Nem nós, os franceses, que somos o país mais produtivo da União Européia, e nem a Europa de maneira geral. Nós simplesmente não temos a mesma competitividade do Brasil”.
Segundo Éric Lainé, alguns pontos são decisivos pra que o açúcar brasileiro seja mais barato. Enquanto a beterraba precisa ser replantada todos os anos por sementes, os canaviais só precisam ser renovados a cada seis anos, uma vantagem em termos de custos. A safra da beterraba, na Europa, dura menos de um trimestre. A de cana, no Brasil, se espalha por nove meses, o que garante o funcionando das usinas por mais tempo.
Outra diferença central vem de um subproduto da cana, o bagaço, usado para gerar eletricidade. Todas as usinas do Brasil têm termoelétricas próprias, são autossuficientes em energia e, muitas, vendem a eletricidade que sobra. Uma energia barata e renovável. Já as usinas de beterraba normalmente geram eletricidade queimando carvão mineral, gás ou óleo diesel, fontes mais sujas, não renováveis, e que encarecem o custo do açúcar.
Por isso, pra evitar uma invasão do produto brasileiro, os europeus utilizam barreiras tarifárias, que encarecem o preço do açúcar e na prática inviabilizam o negócio. “O Brasil nos estimula e nos força a melhorar a nossa produtividade. Afinal, eu devo dizer claramente: nós não queremos importar açúcar do Brasil, pois achamos que a União Européia deve ser autossuficiente em açúcar. Por isso, as barreiras tarifárias são essenciais. Elas fazem parte de uma estratégia de independência na produção agrícola”, declara Lainé.
Entre 2002 e 2005, brasileiros e europeus travaram uma dura batalha na Organização Mundial do Comércio, a OMC. Liderados pelo Brasil, países produtores de cana, como Austrália e Tailândia, acusaram as usinas da Europa de exportar grandes volumes de açúcar subsidiado, o que provocava uma competição injusta no mercado internacional.
Em 2005, a OMC deu ganho de causa aos produtores de cana e obrigou a Europa a reduzir drasticamente as exportações. A derrota na OMC abriu uma crise na cadeia da beterraba. Usinas fecharam, a produção de açúcar caiu mais de 20% e milhares de agricultores abandonaram a atividade. Os países mais atingidos foram os menos produtivos, como Portugal, Grécia e Itália.
Na França, uma das saídas pra amenizar o tombo foi estimular outros produtos feitos com a raiz. Entre eles um combustível: o etanol de beterraba. “Existe uma decisão dos países da Europa de aumentar o uso de energias renováveis e o etanol tem sido muito estimulado. Ainda estamos no começo, mas é algo importante pros nossos agricultores. Afinal, parte da beterraba que antes era destinada ao açúcar, hoje pode ser usada pra produção de etanol”, afirma Lainé.
A fabricação do combustível se baseia na fermentação daquele suco doce, que a gente viu na usina. Uma vez pronto, o etanol é misturado na gasolina, na proporção de 7%.
Além disso, os franceses lançaram recentemente os seus primeiros carros flex. Eles aceitam tanto a gasolina comum, quanto um combustível que contém até 85% de etanol, mas o projeto ainda não decolou. “Nós temos hoje apenas 14 mil carros flex rodando na França, o que é pouco. A nossa dificuldade é que não há muitos postos equipados com bombas de etanol e, por isso, os fabricantes não se animam a fazer carros. Ao mesmo tempo, com poucos carros nas ruas, os postos não querem instalar as novas bombas”, explica.
Para sustentar o avanço do etanol, nos últimos anos, as usinas tiveram que investir na construção ou na ampliação de destilarias. A destilaria pertencente à cooperativa dos beterrabeiros foi inaugurada em 2006 e fica logo ao lado da antiga instalação industrial de açúcar. Com capacidade de produção de 300 milhões de litros por ano é a maior destilaria de beterraba do mundo.
“Na destilaria, além do etanol combustível, nós fabricamos outros tipos de álcool de beterraba. São produtos que entram na elaboração de perfumes, bebidas e também na indústria química e farmacêutica. Os agricultores da cooperativa investiram na nova instalação porque acreditam no futuro do álcool e de etanol”, declara Lainé.
Além de apostar em novos produtos, na última década, os beterrabeiros da cooperativa decidiram ir ainda mais longe – literalmente. Eles resolveram investir na cana-de-açúcar do Brasil.
A cooperativa dos beterrabeiros da França iniciou seus investimentos no Brasil em 2001, num gigante do açúcar e do etanol, a usina Cruz Alta, que fica no município de Olympia, no estado de São Paulo.
Produzindo bem, em apenas dez anos o grupo dos beterrabeiros ampliou bastante a sua operação no brasil. Atualmente, ele conta com sete usinas e trabalha com trezentos mil hectares de cana, uma superfície que se já aproxima da área total de beterraba na França.
Para não faltar dinheiro pras novas expansões, o grupo atraiu um parceiro brasileiro de peso. A Petrobras se tornou sócia das usinas e planeja investimentos gigantescos. “Nos próximos três anos nós devemos chegar a 24 milhões de toneladas de cana”, declara Jaime Stupiello, agrônomo e diretor agrícola.
Com o crescimento acelerado dos últimos anos, a produção de açúcar e etanol no Brasil já se firmou como um dos pilares econômicos do grupo. Atualmente, a cana brasileira já representa cerca de um terço do faturamento global da empresa. Um negócio que gira em torno de 1,3 bilhão de reais por ano.
Na opinião de Denis Lequeux, produtores de cana e beterraba não são apenas concorrentes, mas também parceiros. Como membro da cooperativa, uma vez por ano ele entra na divisão dos lucros das atividades do grupo. Sem citar números, Denis conta que, por enquanto, os investimentos na cana ainda não fazem grande diferença no bolso dos beterrabeiros. Até agora o grosso do lucro da atividade tem sido reinvestido no Brasil.
Um balanço dos negócios da fazenda de Denis, baseados numa série de fontes de renda, mostra que ele tem o ganho do trigo, da cevada, da fava, além da divisão dos lucros da cooperativa, mas a principal receita da família é a beterraba. Segundo ele, o produto deixa um lucro líquido anual equivalente a R$ 2.300 por hectare.
“É uma cultura bem rentável. Ela dá trabalho, exige muito preparo, mas tem resultados melhores do que o trigo, por exemplo. Então, pra quem pode produzir, a beterraba vale à pena, com certeza”, declara.
Outra fonte de renda importante é o subsídio público, que Denis recebe uma vez por ano. O repasse representa cerca de 20% do faturamento bruto da fazenda. “Até há alguns anos, a nossa beterraba era usada essencialmente pra produzir açúcar. Agora, nós temos também o etanol, vários tipos de álcool, além dos investimentos da cooperativa. Então, a nossa cadeia econômica está se tornando mais competitiva com todas as inovações”, diz.
Com o trabalho sério de famílias como esta, os subsídios e as barreiras tarifárias, o cultivo da beterraba atravessou os séculos nos campos da Europa.
Ameaçada, mas também inspirada pela cana de açúcar do Brasil, a cadeia produtiva vem se renovando nos últimos anos. E, apesar das dificuldades, permanece viva como um dos pilares da agricultura do velho continente.