Digamos que você, produtor ou gestor rural, tenha visto ou ouvido falar sobre o pensamento lean e isso lhe chamou a atenção. Em uma busca rápida na internet, depara-se com uma série de conceitos e ferramentas interessantes, e resolve experimentar em sua propriedade.
Em poucos dias, procura mobilizar sua equipe em busca da tão desejada melhoria contínua e resolve começar por um mutirão de 5S em uma área da fazenda. Ao final de algumas horas de descartes, ordenação e limpeza, começam a surgir os primeiros resultados promissores. Em dois dias intensos de muita cooperação de todos envolvidos no time, o ambiente agora é outro: está claramente mais organizado, bonito, seguro e produtivo. Todos comemoram!
Empolgado, você comenta com seu vizinho sobre o que foi feito e convida-o a conhecer sua nova conquista. Passados alguns dias, conforme o combinado, ele chega e – para sua surpresa – tudo voltou ao “normal”: Algumas coisas já não estão mais no lugar certo e até mesmo o cartaz do 5S, que antes estava impresso em cores vivas e preso firme e orgulhosamente à porta, agora está desbotado, com a fita adesiva descolada em um dos cantos, pedindo para ser retirado.
Certamente, algo muito bacana havia sido feito dias atrás, você sabe disso, então resolve conversar com o líder da área para entender o que ocorreu. Um pouco frustrado em ter que explicar –se, ele diz que os últimos dias foram muito corridos e por este motivo não sobrou tempo para ele e a equipe se dedicarem ao lean. Você o compreende perfeitamente, afinal era uma semana decisiva para o trabalho, e chega a pensar que “talvez essa coisa de lean não funcione aqui mesmo. Isso é coisa de Toyota…e nós não somos uma fábrica japonesa!”
Obviamente, não quero que esta seja a sua história, caro amigo leitor! Por isso, vão aqui alguns ingredientes importantes para te ajudar a entrar, permanecer e evoluir na jornada lean. Este entendimento vem como resultado de mais de 20 anos de prática do Lean Institute no apoio a empresas de diversos setores , incluindo o agronegócio.
Vamos representar os elementos de sucesso utilizando a metáfora de uma casa, como aparece na figura a seguir. Chamamos essa casa de “Lean Transformation Framework “ (LTF). Antes de falar sobre o LTF, especificamente, vamos destacar algumas observações :
- Lean não é uma mera caixa de ferramentas, apesar de tê-las como parte importante de sua composição. Lean vai muito além das ferramentas; trata-se de uma forma de pensar.
- Lean não deve ser encarado como “algo a mais” a ser feito. Lean é a maneira como fazemos o que precisa ser feito.
O LTF é composto por 5 dimensões básicas, utilizadas para nortear os esforços de melhoria e garantir o sucesso de uma transformação lean. São elas: Propósito, Melhoria nos Processos, Desenvolvimento de Capacidades, Pensamento Básico e Sistema de Gestão + Comportamento da Liderança.
Em cada uma dessas dimensões há perguntas especificas que podem auxiliar em seu entendimento (destacadas em laranja na imagem). Importante ressaltar que o LTF possui um caráter situacional e não se trata, portanto, de uma sequência rígida para a transformação, mas uma maneira de enxergar a conexão entre os elementos fundamentais.
Vejamos então cada uma das dimensões e como elas se apresentam:
Propósito
Antes de iniciarmos qualquer esforço de melhoria, precisamos definir claramente qual o sentido daquilo que pretendemos fazer. Para nos guiarmos, podemos nos fazer algumas perguntas: Qual problema estamos querendo resolver? Por que este problema precisa ser perseguido agora? Como este problema se conecta ao momento ou à estratégia da organização? Se este objetivo não estiver claro, talvez seja melhor dar um passo atrás e poupar a energia, por enquanto.
Essas perguntas simples, geralmente nos incomodam. Isso acontece porque estamos imersos no dia a dia e – não raramente – distantes de um entendimento racional sobre o motivo primordial que move ou justifica uma mudança; o que dá sentido àquele esforço, naquele momento. O grande propósito, sob a ótica lean, deve ser sempre orientado pela geração de valor ao cliente.
Podemos perceber problemas a serem resolvidos através de indicadores, por exemplo. Se tivermos bons indicadores (leia-se: a informação certa, na hora certa), eles se tornarão meios para sinalizar a necessidade de alguma ação. Definido claramente qual o problema, passaremos a entender as lacunas em termos das demais dimensões do LTF.
Processos
Talvez este seja o pilar mais conhecido entre as dimensões de uma transformação lean, pois trata-se de como o trabalho é realizado (sequência de etapas, tempos e critérios de qualidade, por exemplo) e como ele pode ser melhorado. Envolve, fundamentalmente, as mudança nas práticas para entender e melhorar o trabalho, mas não para por ai: um dos maiores desafios de uma jornada lean é sustentar as melhorias já alcançadas (lembremos da história no inicio do texto, onde a melhoria se perdeu rapidamente).
Importante: As melhorias não devem estar, jamais, dissociadas de seu propósito. Se esta conexão não estiver clara, podemos correr o risco de fazer mudanças de forma pontual mas sem refletir na geração de valor para o cliente (ou processo cliente).
Desenvolvimento das capacidades
Entendemos esse pilar como sendo o pilar das pessoas. Quando melhoramos o processo, precisamos desenvolver as habilidades das pessoas e talvez elas tenham que aprender ou reaprender algumas coisas, eventualmente. Neste sentido, indivíduos precisam caminhar juntos, orientados sempre pelo propósito, com as habilidades certas para compreender o método de trabalho e melhorá-lo (conexão com o pilar de processos).
Os especialistas em melhorar os processos devem ser aqueles indivíduos que executam o trabalho. Precisamos envolver todos na solução, especialmente quem toca o produto ou processo diretamente. Isso pode estar presente também nas diversas “passagens de bastão” (isso envolve maturidade e predisposição em expor e classificar problemas, separar causa e efeito; separar o que pode ser resolvido pela linha de frente e o que não pode). A tratativa de problema, portanto, é uma das habilidades primordiais para a transformação lean.
Vamos agora para “a parte de dentro da casinha”
Comportamento da Liderança
Estamos aqui falando ainda de pessoas, mas daquelas que estão em posição de liderar e conduzir. Líderes lean possuem características desejáveis para engajar, apoiar, ouvir, estimular, desenvolver e orientar as pessoas (que, por sua vez, precisam ter as habilidades certas, para os processos certos, entregando o valor como propósito).
Liderar com o pensamento lean significa ser menos “capataz” e mais “mentor”. Fazer as perguntas certas em vez de dar as respostas, estar presente no gemba (“chão de fábrica”), etc. Parte importante da característica do líder lean é dar condições para que as pessoas se sintam confortáveis em expor problemas. Falaremos mais sobre liderança lean em outra oportunidade, com maiores detalhes.
Sistema de gestão
Sobre o sistema de gestão, estamos falando sobre como desenhar o trabalho dos gestores e os mecanismos que propiciam o envolvimento das pessoas, conduzindo os processos, para atingir o propósito. São rotinas e padrões gerenciais que garantem a conexão entre os esforços e a estratégia. Parte fundamental do sistema de gestão deve ser composta por meios de enxergar e apoiar a resolução de problemas, em todos os níveis.
Tanto o sistema de gestão quanto os comportamentos da liderança também precisam evoluir com o tempo. Idealmente, um bom sistema de gestão torna as pessoas e os processos menos vulneráveis a mudanças nas lideranças (evitando que a chegada de um novo líder mude por completo a maneira como as coisas funcionam).
Pensamento Básico ou Pressupostos
Na base do LTF temos talvez a dimensão menos tangível de toda esta estrutura. Falamos aqui, basicamente, sobre a cultura da organização (que é o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o ponto de chegada de uma transformação); a maneira como as pessoas enxergam e refletem sobre a realidade. Escondem ou resolvem problemas?
Parte da cultura lean passa por valorizar o aprendizado e a evolução no trabalho, permitindo e garantindo um espaço para que as pessoas experimentem e aprendam. Isso envolve o tempo da liderança para escutar, ver “ in loco” e absorver as demandas. Além disso, tirar das pessoas o medo da culpa. Em lugares onde a cultura do medo está presente, a melhoria passa longe. Queremos entender os “por quês” e não apontar os culpados.
“Modo de preparo”
Traçamos aqui de maneira breve os ingredientes fundamentais para uma receita de sucesso na jornada lean.
Não comece pelas ferramentas, pois elas só são úteis quando temos claramente definido o propósito. Dessa forma, partindo com o olhar situacional, podemos então abrir a caixinha de ferramentas para escolher a que melhor se adeque às necessidades. Fazendo desta forma, as melhorias acontecem, os resultados se sustentam, os processos evoluem, as pessoas se desenvolvem e , com práticas firmes e bem fundamentadas, a cultura começa a mudar com o tempo.
E na sua empresa ou fazenda, qual problema você precisa resolver?