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O bem-estar animal como indicador da sustentabilidade da agricultura brasileira

Entendemos que o Brasil, na sua produção pecuária, pode atender às cinco liberdades que oferecem o arcabouço global de proteção ao bem-estar animal, como nenhum outro país

O bem-estar animal como indicador da sustentabilidade da agricultura brasileira

O Brasil está no caminho de se tornar referência mundial para bem-estar de animais de produção. Está avançando rapidamente no entendimento de questões relacionadas com animais de companhia e abrindo espaço para proteger animais selvagens. Os desafios e excepcionais oportunidades para transformar o Brasil em modelo de pecuária com elevado bem-estar animal atraíram-me para a Universidade de São Paulo, onde, a partir de julho de 2013, após 26 anos de trabalhos de pesquisa em vários países, iniciamos as atividades para criar um centro de excelência em bem-estar único, com enfoque no desenvolvimento de indicadores de bem-estar animal, produção de fenótipos robustos e resilientes, qualidade de vida dos produtores e consumidores e, também, sustentabilidade.

Orgulho-me de, no período de 1988 a 1992, ter ajudado na consolidação do primeiro grupo de pesquisa em bem-estar animal, iniciado em 1986, na Universidade de Cambridge, pelo professor Donald Broom, onde trabalhei no meu doutorado. Já naquele período, o Brasil pensava em bem-estar animal, e foi no Congresso Mundial de Medicina Veterinária, no Rio de Janeiro, em 1991, que apresentei os resultados inéditos sobre mudanças em opioides endógenos no cérebro de suínos, causadas pelo alojamento em celas de gestação, que estão associados com comportamento repetitivo, em várias espécies, incluindo humanos.

O evento do Rio de Janeiro abriu oportunidades para a minha contratação, após o doutorado, para apoiar o estabelecimento do grupo de pesquisas na Escola de Veterinária de Munique, na Alemanha, na Ludwig Maximilians Universität, onde permaneci até 1996. No período que estava na Alemanha, em 1994, com apoio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e do Conselho de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul, fizemos o primeiro evento da América Latina na área de bem-estar animal, abordando temas como transporte e abate de animais. A revista A Hora Veterinária dedicou uma edição especial sobre o tópico. Em 1995, prestei concurso para uma vaga de professor na Universidade do Estado de Michigan, onde fui contratado e passei dez anos, criando um dos mais influentes programas do mundo nesta área. Em 1996, voltamos ao Brasil, quando eu já estava em Michigan, com um treinamento teórico e prático sobre abate humanitário de animais, em um evento chamado Panvet. Uma mestranda e duas doutorandas do Brasil trabalharam comigo, em Michigan, além de muitos outros colegas e estudantes.

Quando prestei o concurso para professor titular na Escola de Veterinária da Noruega, em 2005, estávamos com parceria estabelecida junto à Universidade de Passo Fundo e Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), para treinarmos os auditores fiscais na área de abate humanitário. O evento aconteceu, e a Temple Grandin ficou impressionada com os abatedouros de aves que visitou. Esta parceria foi fundamental para as ações do Mapa nesta área. Nos quatro anos que permaneci na Noruega, como professor titular e criador do programa de bem-estar naquela instituição, meu contato com o Brasil foi intenso. Recebi estudantes, pesquisadores e, através da embaixada do Brasil em Oslo, estabelecemos uma excelente linha de comunicação com instituições brasileiras. Quando prestei concurso para professor titular no Scotland’s Rural College, em Edimburgo, levei para a Escócia o segundo maior projeto do mundo na área de bem-estar animal, financiado pela União Europeia, o projeto AWIN, com seis milhões de euros e um belo pilar no Brasil, representado pela estratégia de comunicação científica. O primeiro evento depois que obtivemos o projeto foi em Belo Horizonte, onde levamos a proposta da criação de uma escola global na área de bem-estar animal, que se transformou no Animal Welfare Science Hub, um portal globalizado de comunicação na área de bem-estar animal.
Cada visita ao Brasil dava-me certeza que a bússola do bem-estar animal e da sustentabilidade na produção de alimentos estava apontada para este país. Em 2012, com recursos parciais que eu obtive do Biotechnology and Biological Sciences Research Council (BBSRC), pesquisadores do Reino Unido passaram uma semana em Brasília estabelecendo estratégias de colaboração em várias áreas, uma delas a de bem-estar animal.

Durante a coordenação do projeto AWIN, a representação do Brasil em Bruxelas nos convidou para vários eventos, pelo fato de que bem-estar animal é central no acordo de livre-comércio entre o Mercosul com a União Europeia, consolidado em 28 de junho de 2019. O acordo estabeleceu um diálogo e troca de informações entre a União Europeia e o Mercosul sobre bem-estar animal, assegurando o respeito às condições e demandas pelos consumidores com cooperação muito estreita.

Bem-estar animal tornou-se uma disciplina obrigatória em nosso programa na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP e, em 2018, fomos agraciados com o prêmio da Sociedade Mundial de Veterinária na área de bem-estar animal.

A energia do Brasil é contagiante e rapidamente criamos parcerias com a Polícia Militar, Polícia Militar Rodoviária, Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo e com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, estabelecendo um dos melhores programas do mundo no monitoramento de bem-estar de animais, através da Plataforma Unificada para Responder aos Acidentes envolvendo Animais (PURAA). Esta iniciativa foi premiada duas vezes pela Polícia Militar, por inovar na solução de problemas recorrentes ligados à segurança viária nos acidentes envolvendo carga viva e atropelamento de animais.

Os parceiros da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, mais especificamente os responsáveis pela Coordenação da Defesa Sanitária Animal e os parceiros do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, ligados à Delegacia de São Paulo, perceberam o potencial da iniciativa PURAA para fiscalizações. Esta forma revolucionária de utilizar as rodovias para entender questões de bem-estar animal, saúde animal, segurança alimentar e evasão de impostos abriu portas para o Estado de São Paulo estabelecer uma rede que se tornou modelo para o Brasil. A interação entre os diversos órgãos fiscalizadores permite que o transporte de carga viva, nesse Estado, seja rotineiramente fiscalizado nas questões de bem-estar animal, nas rodovias, pelas autoridades competentes.

A indústria ligada à produção animal sempre esteve atenta a essas questões e encontrou no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento um enorme apoio. A recente Instrução Normativa nº 113, de 16 de dezembro de 2020, estabelece as boas práticas de manejo e bem-estar animal nas granjas de suínos de criação comercial e coloca a produção de suínos no Brasil na vanguarda do mundo, com orientações precisas sobre treinamento e medidas para garantir o bem-estar animal. Somando essa instrução normativa, é muito importante mencionar a liderança da Associação Brasileira de Produtores de Suínos, que trabalhou muito próxima do Mapa na discussão deste importante documento, atraindo os diversos atores da cadeia.

A bovinocultura também se beneficiou pelas iniciativas lideradas pela Embrapa na mensuração dos benefícios do sistema silvopastoril. Os dados divulgados demonstram de forma inequívoca que a pecuária pode conviver harmonicamente com a rica biodiversidade do Brasil e potencialmente se transformar em uma atividade mitigadora dos gases de efeito estufa. Com muita frequência modelos de produção de gases de efeito estufa se mostram incompletos quando avaliam sistemas integrados de produção, como os que o Brasil é pioneiro.

É evidente que um artigo sobre sustentabilidade e bem-estar não pode ser considerado, no Brasil, se ignorar o bioma amazônico e o Pantanal. Os 26 anos em que estudei e pesquisei em outros países me deram uma clara noção de como o mundo olha com curiosidade para a nossa relação, a relação do Brasil com a rica biodiversidade.

Entendo que a rápida divulgação das informações em tempo real, com dados de queimadas e ocupação ilegal de áreas de preservação ambiental, excede a enormidade de ações de conservação dos biomas brasileiros. O Brasil precisa melhorar a estrutura de fiscalização de crimes ambientais. É imperativo que as regras existentes para certificação da origem dos animais sejam devidamente seguidas, e existem instituições oficiais que labutam para mitigar o negativo impacto que alguns transgressores protagonizam.

As questões ligadas à biodiversidade são pilares que asseguram a presença do Brasil em acordos como o Mercosul e União Europeia e também em iniciativas globais de mitigação das consequências de mudanças climáticas.

Na 88ª Assembleia Geral da OIE, o Brasil garantiu espaço para a exportação de produtos de origem animal com a expansão do número de unidades da federação que obtiveram a certificação de livres de febre aftosa, sem vacinação. Na mesma assembleia, a diretora geral Monique Eloit reafirmou o compromisso da OIE com o bem-estar animal, citando as discussões geradas pelo documento sobre aves de postura.

Entendemos que o Brasil, na sua produção pecuária, pode atender às cinco liberdades que oferecem o arcabouço global de proteção ao bem-estar animal, como nenhum outro país.

A primeira liberdade assegura que os animais estejam livres de fome e sede, com acesso à água e alimentos adequados para manter sua saúde e vigor. Somente situações climáticas extremas podem colocar em risco essa liberdade no Brasil, pois produzimos alimentos que atendem ao mercado de exportação e as pastagens são abundantes, quando bem manejadas.

Com relação à segunda liberdade, que assegura que o animal esteja livre de desconforto, oferecendo condições adequadas às várias espécies, incluindo abrigos e descanso, alguns desafios existem, que certamente podem ser resolvidos, com acesso à sombra para bovinos em sistemas silvopastoris. Aves de postura e suínos precisam de mudanças nos sistemas de alojamento.

A terceira liberdade assegura ao animal uma vida livre de dor e lesões, garantindo rápido diagnóstico e intervenções para mitigar dor. O Brasil é um dos países que mais utilizam imunocastração em suínos, porém, procedimentos cirúrgicos que causam dor e desconforto ainda acontecem e são assuntos que mobilizam profissionais e produtores na busca de soluções. Com relação ao diagnóstico de doenças, temos veterinários competentes que são apoiados por uma estrutura oficial e privada, de excelência em diagnóstico. É importante também salientar o papel da indústria de medicamentos veterinários e insumos, que está apoiando o Ministério da Saúde com propostas de produção de vacinas para imunizar a população contra a covid-19.

Poucos países têm acesso a ambientes como os que estão disponíveis no Brasil para que os animais tenham assegurada a quarta liberdade, onde os comportamentos naturais das espécies sejam garantidos. O sistema silvopastoril para criação de ruminantes está sendo desenvolvido com muita rapidez, bem como sistemas de Pastoreio Racional Voisin. A grande proporção da produção bovina no Brasil acontece em situação de pastejo. A recente Instrução Normativa 113 prevê a eliminação de celas de gestação para fêmeas suínas. Provavelmente as aves de postura são as mais desafiadas no Brasil, porém, medidas estão sendo estudadas para possíveis transições a sistemas que garantam que as aves tenham acesso a ninhos, material para ciscar e outras demandas importantes para a espécie. Várias empresas já manifestaram prazos para a transição na produção de ovos, como resultado das demandas da sociedade civil.

A quinta liberdade, que prevê ausência de medo e estresse, pode também diferenciar a nossa pecuária no Brasil, pela crescente preocupação com treinamentos e atividades de extensão conduzidas por universidades e pela Escola Nacional de Gestão Agropecuária (Enagro). A mão de obra que atua nas áreas rurais, nas cadeias de aves e suínos, na região Sul, é parte de integrações, onde oportunidades de treinamento abundam. As cadeias de bovinos de corte e bovinos de leite têm avançado rapidamente na busca de manejo de baixo estresse. O transporte de animais tem regras precisas e estamos evoluindo com fiscalizações, como o exemplo da iniciativa PURAA, que nasceu em São Paulo já está em Minas Gerais e no Estado do Mato Grosso, com chances de fazer parte das ações do Mapa, brevemente, em todo o território brasileiro. O abate de animais, com inspeção federal, estadual e municipal, segue legislações específicas, asseguradas por lei que diz respeito aos animais no manejo pré-abate e insensibilização. O Mapa protagonizou extensivas ações de treinamento, em todo o Brasil, para equipar a indústria com o acesso às técnicas mais avançadas para proteger os animais no período do transporte, manejo pré-abate e abate.

O Brasil já tem uma base de dados robusta, mostrando que a pecuária, quando opera com eficiência em áreas com pastagens de boa qualidade, especialmente em atividades consorciadas com florestas e lavouras, contribui para a mitigação dos gases de efeito estufa.

Uma das tarefas mais importantes é conhecer o consumidor brasileiro. Os dados recentes de pesquisa no nosso grupo e em outros demonstram que, mesmo desconhecendo os sistemas de produção animal, quando informados sobre as práticas existentes, a preferência é sempre para sistemas que valorizam o bem-estar animal e a sustentabilidade. A argumentação de que o nosso consumidor ignora produtos diferenciados não procede. Mesmo considerando a significativa contribuição do agronegócio para as exportações do Brasil, a maior riqueza da produção agrícola e da produção animal é com a segurança alimentar da nossa população.

Um dos belos exemplos é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública, através de recursos federais repassados para Estados, municípios e escolas federais. Este programa busca alimentos com fornecedores locais, especialmente ligados à agricultura familiar e cooperativas, criando um dos mais inteligentes sistemas para aproximar quem produz de quem consome. Segundo a Embrapa, a participação da agricultura familiar alcançou 30% do total dos alimentos produzidos, em toneladas. Os dados do Censo Agropecuário 2016-2017 mostram que 31% do número de cabeças de bovinos, 45,5% das aves, 51,4% dos suínos e 70,2% de caprinos pertencem à agricultura familiar. Além disso, no período do Censo, a agricultura familiar foi responsável por 64,2% da produção de leite. Estes dados indicam que a produção animal é fundamental para a economia das famílias no Brasil.

Quem já visitou a região Norte do Brasil, certamente presenciou a abundância de produtos regionais, coletados em áreas protegidas, como açaí, cupuaçu, castanha-do-pará, entre tantos outros. Estas riquezas ainda esperam uma estratégia mais organizada para coleta, processamento e comercialização, promovendo o crescimento sustentável das populações tradicionais. Experiências recentes têm levado produtos explorados por indígenas e populações tradicionais para a indústria de fármacos e produtos de beleza, sendo que o maior gargalo é a escassez de protocolos que ofereçam segurança jurídica para que esses conhecimentos sejam protegidos e revertam em benefícios para as populações.

O arcabouço legal para organizar ações da sociedade civil e governo, na proteção ambiental, foi reforçado, no dia 16 de dezembro de 2020, quando o Senado Federal do Brasil aprovou um projeto de lei (PL) que criou a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). A rede de universidades no Brasil, juntamente com institutos de pesquisa, como a revolucionária Embrapa, e os institutos estaduais de pesquisa vão se beneficiar de parcerias com instituições públicas e privadas, bem como com organizações do terceiro setor, com o protagonismo do CNPq e Capes, que já estão capitaneando projetos ambiciosos. Uma sólida política de aporte de recursos alicerçada no estabelecimento de prioridades em pesquisa e extensão vai colocar este país continente, que é o Brasil, como modelo de sustentabilidade.

Este modelo já está consolidado em um recente edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que prevê a alocação de 120 milhões de reais em projetos, previstos para oito áreas, uma delas abordando agricultura e abastecimento, sendo que um dos dois itens na área de agricultura e abastecimento é o desenvolvimento de práticas sustentáveis na produção de alimentos de origem animal e vegetal.

Entendemos que a relação do Brasil com a comunidade internacional é fator determinante para que os atores responsáveis pelas boas práticas na área de bem-estar animal, sustentabilidade e qualidade de vida dos produtores sejam recompensados pelas ações proativas. As parcerias crescentes com outros países, em ações que promovem práticas sustentáveis, são muito bem-vindas porque oferecem oportunidades para que experiências positivas recebam a merecida visibilidade. O Campus Fernando Costa, da Universidade de São Paulo, em Pirassununga, é o local perfeito para o estabelecimento do Centro de Excelência em Saúde, Sustentabilidade e Bem-estar Único.

 

Confira a live sobre produção sustentável e bem-estar animal com o Professor Adroaldo Zanella no canal TV Gessulli no Youtube