Entre 1950 e 2008, os EUA tiveram 11 presidentes com um mandato médio ligeiramente menor do que seis anos. No mesmo período, o seu banco central, o Federal Reserve System (conhecido como Fed), teve cinco presidentes (“chairman”) com um mandato médio da ordem de 11 anos. O atual, Ben S. Bernanke, iniciou seu mandato em fevereiro de 2006, indicado pelo presidente George Bush, e prossegue com Barack Obama. Em média, portanto, os chairmen do Fed serviram, com relativa autonomia política e operacional, a mandatos que foram o dobro do dos presidentes. Alguns, como os famosos William Martins e Alan Greenspan, serviram por quase 20 anos, durante o mandato de quatro presidentes! Não é sem motivo que, em algumas pesquisas de opinião nos EUA, o “chairman” do Fed é considerado a segunda pessoa mais importante da administração pública. Isso sugere um sério “déficit democrático”, uma vez que ele não responde diretamente à preferência dos eleitores. Como explicá-lo?
Antes de tentar fazê-lo, lembremos que se espera da ação dos bancos centrais dois resultados muito importantes para o bom funcionamento do sistema econômico, ou seja, da economia real:
1) que garantam a higidez, a estabilidade e a liquidez do sistema financeiro. A disponibilidade e fluidez do crédito são fatores decisivos para a reprodução do circuito econômico; e
2) que usando o instrumento à sua disposição, a taxa de juros de curto prazo, realizem a sofisticada e difícil tarefa de manter baixa a taxa de inflação e sua volatilidade, sem perder de vista o crescimento da produção (do PIB) e, consequentemente, do emprego.
Estas são missões que se acredita possíveis e viáveis e exigem não apenas habilidade e arte, mas, também, o conhecimento factual de: a) como funciona o sistema financeiro; b) como a política monetária pode e deve ser exercida para coordená-lo; e c) como o setor produtivo crê, aceita e responde a essa ação. Trata-se, obviamente, de tarefas estritamente técnicas, que exigem um conhecimento especializado que, por hipótese, seria informado por uma “ciência monetária”.
Quando, portanto, o poder incumbente eleito entrega tais tarefas a um corpo profissional estável (o banco central), indicado por ele e aprovado pelo Congresso, todos entendemos e aceitamos. O “déficit democrático” se justifica pela mesma razão pela qual ele entrega a engenheiros, por exemplo, o projeto e construção de uma ponte. Esta, por necessidade, deve obedecer às leis da física, às quais eles, por precaução, acrescentam um “reforço de ignorância” para suportar os possíveis estresses produzidos pelos eventos raros com os quais a natureza caprichosa sempre nos surpreende. O resultado desse labor será fisicamente visível nos serviços da ponte, na sua estabilidade e duração. Confirma-se, assim, a razoabilidade e inteligência de tal “déficit democrático”, mesmo porque a ponte dará frutos (votos!) ao poder incumbente no futuro…
O problema a resolver é: como se mede a razoabilidade e inteligência que justifica o “déficit democrático” no caso da ação do Fed? Talvez o melhor indicador para medir o sucesso da segunda tarefa (estabilidade com pequena volatilidade do valor da moeda) seja observar a taxa de inflação. Ela está registrada, de 1950 em diante, no gráfico abaixo. As áreas destacadas no gráfico são os períodos recessivos produzidos, em geral, por “aperto” importante do crédito pela elevação da taxa de juros para reduzir a taxa de inflação que havia escapado ao seu controle. Isso deixa muita dúvida sobre a capacidade de previsão da ciência monetária supostamente construída pela academia e utilizada pelos bancos centrais.
A extrema variabilidade (que diminuiu a partir de meados dos anos 90) da taxa de inflação e o número de recessões mostra com clareza a diferença entre a capacidade de organizar a natureza (a ponte), produzida pela ciência física, e a capacidade de organizar o comportamento da sociedade (a taxa de inflação) pela “ciência monetária”. O sucesso do Fed na realização da segunda tarefa é, portanto, pelo menos discutível.
Quanto à primeira e mais importante missão dos bancos centrais (garantia de higidez e estabilidade do sistema financeiro), o fracasso do Fed e dos outros bancos centrais (talvez com a exceção do Brasil) não poderia ser mais desastroso: produziram uma crise mundial de tamanho que parecia impossível diante dos supostos avanços da tal teoria monetária. Hoje, parece evidente que o que esta ganhou em sofisticação formal perdeu em relevância…
Tudo isso, entretanto, não modifica o fato de que um banco central operacionalmente autônomo é uma necessidade e que a especificidade de sua tarefa exige um conhecimento especializado. Mas a justificativa do “déficit democrático”, que ele pressupõe, precisa da maior transparência de seus “modelos”, de melhor teorização e suporte empírico para eles e, principalmente, de mais humildade de seus autores em reconhecer suas limitações. Acima de tudo, os membros dos bancos centrais devem oferecer à sociedade uma completa prestação de contas individual por escrito, e no tempo adequado, dos seus votos nos comitês que formatam a decisão coletiva, para que eles possam ser analisados criticamente.
-Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.