Desde o final do ano passado o governo vem cozinhando uma divergência entre os ministros do Meio Ambiente, Carlos Minc, e da Agricultura, Reinhold Stephanes, sobre o Código Florestal Brasileiro. As tentativas de alterar a lei florestal não se restringem ao Executivo. Também no Congresso Nacional há um movimento em duas frentes para mudá-la: a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável analisa um projeto de lei (PL 6.424) e uma comissão especial avalia condensar toda a legislação ambiental num único diploma, o Código Ambiental, no bojo do qual o Código Florestal viria modificado.
Não é a primeira vez que esse debate vem à tona. Em 2002, no final do governo Fernando Henrique Cardoso, o Congresso tentou modificar a medida provisória por meio da qual o código vige. Houve um embate encarniçado entre os ruralistas do Congresso e os ambientalistas que resultou no arquivamento da proposta. Desde a instituição do nosso primeiro Código Florestal, em 1934, durante a ditadura Vargas, são recorrentes as tentativas de modificá-lo.
O debate sobre o Código Florestal tem estereótipos muito bem definidos. A lei é tida de forma quase dogmática como uma das melhores e mais avançadas leis de proteção ambiental do mundo. Logo, sempre que alguém tenta modificá-la é rapidamente rotulado como alguém que quer destruir o meio ambiente e qualquer um que se coloque contra a alteração recebe o rótulo de protetor do meio ambiente. A discussão se polariza e se transforma numa batalha entre os que querem destruir o meio ambiente, os ruralistas, e os que lutam para defendê-lo, os ambientalistas.
Olhando para o problema dessa forma simplória, o julgamento é imediato. Entretanto, a despeito da improbabilidade de alguém, em pleno século 21, continuar empenhado em destruir o meio ambiente, é esclarecedor nos fazermos a seguinte pergunta: a agropecuária brasileira quer mesmo desmatar mais?
Seguramente, deve haver alguém, em algum lugar, que queira, mas nem de forma muito irresponsável essa pecha pode ser jogada sobre todo o setor agropecuário. A senadora Kátia Abreu (DEM-TO), que também é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e representa o setor rural sindicalizado, publicou artigo em que advoga o desmatamento zero na Amazônia e na mata atlântica. Então, qual é o problema? Se os produtores rurais não querem destruir o meio ambiente, qual é a razão do descontentamento com a lei florestal?
O que incomoda o setor rural no Código Florestal é que ele joga o custo da preservação ambiental apenas nos produtores.
A nossa lei florestal obriga cada proprietário de imóvel rural a manter dentro dos limites de sua propriedade uma área de floresta, a chamada reserva legal. Essa reserva legal varia de tamanho de acordo com a localização da propriedade. Nas florestas amazônicas ela é de 80% da área do imóvel, nos cerrados amazônicos é de 35% e no restante do País é de 20%. Isso significa dizer que o proprietário rural não pode utilizar a sua propriedade como bem entender. Parte do seu direito de propriedade é sacrificado em nome de um benefício coletivo maior. É esse sacrifício que faz a lei ser percebida como uma legislação avançada e há todo um arcabouço legal – constitucional e infraconstitucional – que o legitima.
Mas não é esse o problema fundamental. O problema é que o fato de o proprietário não poder utilizar sua área da forma mais eficiente em termos econômicos faz com que ele incorra em perdas financeiras e a lei reza que esse é um problema, única e exclusivamente, dele.
Imagine-se uma propriedade de mil hectares em São Paulo – onde a reserva legal é de 20% – arrendada a uma usina de álcool. O imóvel é todo ocupado com cana-de-açúcar, que deverá virar biocombustível no final da safra, ocasião em que o proprietário receberá, digamos, R$ 300 por hectare com o arrendamento da fazenda. Ele receberia, então, R$ 300 mil por ano pelo aluguel do imóvel. Mas ele tem de manter uma reserva florestal de 20% da área, logo, ele só pode ter 800 hectares de cana e tem a obrigação, por lei, de reconstruir a mata original nos 200 hectares de reserva legal. Por outro lado, com apenas 800 hectares em produção ele terá uma redução na sua receita anual de R$ 300 mil para R$ 240 mil e ainda precisará investir pesadamente na reconstrução da floresta original da reserva legal, sem saber como fazê-lo. Imagino que apenas Deus saiba como construir uma floresta original.
Esse raciocínio pode ser estendido a qualquer propriedade rural, bastando substituir o porcentual de reserva legal e o valor da terra de acordo com a localização do imóvel e refazer as contas. É precisamente esse efeito do Código Florestal que causa a maior parte da motivação para os esforços de alteração da lei. É muito mais uma questão de preservar a área agrícola existente do que de aumentá-la com novos desmatamentos.
Há, sem dúvida, várias outras inquietações que a essa se somam. Alguns proprietários cumpriram a lei de 1934 e viraram criminosos em 1965, quando o código foi alterado; há alguns que cumpriram as exigências da lei de 1965 e viraram criminosos em 1996, quando a lei foi alterada novamente; alguns compraram de boa-fé áreas sem floresta e agora têm de internalizar o passivo. O tema não é simples.
É um desrespeito à sociedade brasileira reduzir o debate do Código Florestal a uma guerra entre ruralistas tentando destruir o meio ambiente e ambientalistas tentando salvá-lo. O Brasil precisa de leis realmente capazes de proteger os seus biomas sem que o setor rural reste inviabilizado. E não são os ruralistas que mais têm a ganhar com isso, é o meio ambiente, a princípio, e o povo brasileiro, ao cabo. A sociedade merece uma discussão racional e séria sobre o Código Florestal.
*Ciro Siqueira é engenheiro agrônomo.