Oito anos após o início das negociações, neste domingo (15/11) foram concluídas as negociações para a criação do tratado RCEP – a “Parceria Regional Econômica Abrangente” (Regional Comprehensive Economic Partnership, em inglês).
O acordo reúne os três países mais importantes do Leste da Ásia (China, Japão, Coréia do Sul), todos os dez membros da ASEAN – a Associação de Nações do Sudeste Asiático(*) – e dois países da Oceania (Austrália e Nova Zelândia). A Índia fazia parte do grupo, mas decidiu ficar em stand-by alegando que a sua indústria doméstica não aguentaria uma competição ampliada com a China e outros países do bloco.
Em tempos de pandemia, protecionismo e movimentos antiglobalização, o acordo da RCEP surpreende o mundo, ao abarcar quase um terço da população mundial (2,2 bilhões de pessoas), do PIB (USD 26 trilhões) e do comércio.
Vale destacar aqui alguns pontos fundamentais deste acordo:
1. A RCEP é uma resposta em sentido contrário ao que o Ocidente vinha fazendo. Trump privilegiou o “America First”, apertou os seus parceiros do NAFTA e saiu da Parceria Transpacífico. O Reino Unido deixou a Europa, que hoje tem crescentes dificuldades completar a sua integração. Enquanto isso, a Ásia avança e consolida as suas cadeias de suprimento e valor.
2. O acordo basicamente “formaliza” as relações de comércio e investimento entre esses 15 países, sem pretender refazê-las. Trata-se de uma iniciativa que consolida os acordos de tarifa zero (duty free) e de preferências tarifárias já existentes entre os integrantes da RCEP, sem se preocupar em resolver sensibilidades e resistências históricas. ASEAN, Japão, Austrália e Nova Zelândia assinaram dezenas de acordos com os membros do RCEP, que formam um “prato de espaguete” clássico de tarifas e regras de origem. É isso que a RCEP simplifica e formaliza.
3. A RCEP é um modelo de integração “pragmática”, via construção de consensos até onde for possível e bem diferente do modelo da União Europeia e dos acordos feitos pelos Estados Unidos. Pretende-se alcançar o zeramento das tarifas intrabloco para cerca de 90% dos bens, acoplado a regras de origem que promovam a integração das cadeias de suprimento dentro da região. Além disso, busca-se reduzir as barreiras não-tarifárias e adotar medidas de facilitação de comércio, incluindo a ampliação do comércio eletrônico em toda a região. Temas mais sensíveis como serviços, propriedade intelectual, empresas estatais de comércio, padrões ambientais e trabalhistas e abertura de mercados de produtos agrícolas sensíveis são “pragmaticamente” colocados de lado, até que o futuro permita algum consenso sobre essas matérias.
4. Apesar da China aparecer com a grande ganhadora da criação do RCEP, quem de fato “arquitetou” o acordo desde o início foi a ASEAN, que antes costurou acordos de livre comércio com todos os países da RCEP. Além disso, é preciso destacar que a diáspora histórica da China fez com que todos os países do Sudeste Asiático tenham comunidades chinesas poderosas, que normalmente constituem-se nos principais empresários da região, ainda que sem o controle da política local. Daí a grande aceitação que a RCEP tem no mundo empresarial nos países do Sudeste Asiático.
Lições da RCEP para o Brasil e a América Latina: gansos voadores x patos sentados
Com a integração asiática da RCEP, a grande pergunta que fica é porque os países emergentes da Ásia decolam, ampliando a sua integração apesar da pandemia e da recessão? E porque esses países deixaram o Brasil e a América Latina “comendo poeira” nas últimas décadas? Farei aqui algumas reflexões.
A primeira diferença nasce nos anos 1950, quando a América Latina adota o modelo de industrialização à base de substituição de importações e a Ásia opta por uma estratégia agressiva de promoção das exportações.
A partir dos anos 80, surge no Leste da Ásia o que se convencionou chamar de “modelo dos gansos voadores”, que é o aproveitamento das sinergias regionais por meio de maciços investimentos cruzados, com destaque para a transferência do poder tecnológico do Japão por meio de participações minoritárias em empresas dos seus vizinhos menos desenvolvidos. Assim, a formação em cunha foi liderada inicialmente pelo superganso Japão, seguido de perto pelas chamadas “novas economias industrializadas” – Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura -, e ao final pelos países mais dinâmicos da Asean – Tailândia, Malásia, Indonésia, Vietnã e Filipinas. A partir de 1990, essa formação começa a se alterar com o retorno intempestivo e brutal da China ao cenário global.
Esse desenho celeste, cujo ganso líder foi o Japão e agora é a China, foi viabilizado graças a uma interessante divisão regional do trabalho no setor manufatureiro, com os países mais ricos repassando as atividades que demandam menor custo de mão-de-obra para parceiros ou filiais que se instalam nos gansos mais atrasados do Sudeste e Sul da Ásia. O objetivo é atingir uma competitividade sistêmica global (e não local) que normalmente se inicia no setor têxtil, segue com as indústrias química, siderúrgica e automotiva e avança hoje com imensa força nos eletrônicos, nas tecnologias de informação e no mundo digital. Estabelece-se, assim, uma sequência de ciclos de industrialização nos quais os setores intensivos em trabalho vão sendo realocados nos países mais pobres, à medida que os mais ricos aumentam a sua renda per capita e os salários.
Enquanto isso, a América Latina enroscou-se com inflações galopantes, baixo crescimento, alto endividamento, governos perdulários, instituições precárias e mudanças permanentes nas regras do jogo. Em 1993, o pesquisador Michael Mortimer, da Cepal, publica um artigo sobre o tema com o sugestivo título Flying geese vs. sitting ducks, sugerindo que a América Latina se comportava como “patos sentados assistindo ao vôo dos gansos asiáticos. Note que esse alerta foi feito em 1993!
Ocorre que a América Latina optou por mecanismos de integração regional formais e incompletos, voltados para o comércio. E a integração dos países asiáticos se deu por meio de investimentos intra e entre empresas e transferência de tecnologia orientada para a competição sistêmica no mercado mundial. Em suma, com a RCEP a Ásia vai chegando a um vôo de cruzeiro, sustentado pela estabilidade dos seus fundamentos econômicos, pela persistência da ação empresarial voltada para comércio internacional, pela construção de instituições mais robustas e por maciços investimentos em educação. E o Brasil e a América Latina? Vão continuar assistindo a esse espetáculo sentados?