Quando o conde Amadeu Amidei Barbiellini morreu em 1955, Marcelo Amidei Barbiellini Jr. tinha apenas 11 anos. Mas foi o suficiente para se fascinar pelo avô e suas histórias, incluindo as do tempo em que ele viveu na China. Um presente que ganhou dele também foi responsável por traçar o seu futuro profissional. Com o kit de lentes Poliopticon se podia montar binóculos, microscópios etc. Isto despertou em Marcelo uma paixão pela imagem, que o levaria a tevê. Em 1969 entrou para a TV Cultura e lá dirigiu programas como o infantil Bambalalão e o Quem sabe, sabe. Na Bandeirantes comandou atrás das câmeras O melhor de todos.
A comunicação não era novidade para ele, mas sim o meio. O seu avô foi o fundador da Chacaras e Quintais hoje Avicultura Industrial e, seu pai (Marcelo Barbiellini Amidei), fundaria revistas como Mundo Agrícola e Aves e Ovos. Nas duas últimas, onde Marcelo começou sua carreira antes de resolver se dedicar à televisão. Hoje Marcelo é professor na FAAP e na Faculdades Associadas Oswaldo Cruz, ambas em São Paulo, onde reside. Nesta entrevista realizada em sua casa, Marcelo relembra as trajetórias de seu avô e de seu pai, além do rompimento profissional que aconteceu entre os dois em 1952.
AI/SI – Uma curiosidade, o título de conde do seu avô é de família?
Marcelo – De família. Porque tem a nobreza pelo lado da igreja e pelo lado real e o título do meu avô era o que se dizia por papa e por rei.
AI/SI – Aqui no Brasil ele morava num casarão na Vila Ema, em São Paulo?
Marcelo – Meu avô morava nesta casa que a gente chamava de castelo. Era uma casa que tinha 16 quartos – agora é hospital [hoje desativado], deve ter mais quarto ainda e na frente da casa, que hoje é o fundo do hospital, havia um bosque. Depois do bosque eram as instalações do escritório pessoal do meu avô, que era um prédio grande. E ele tinha outras propriedades, inclusive a praia da Cigarras no litoral norte. A praia das Cigarras era do meu avô, a praia inteira. O nome, inclusive foi meu avô quem deu. A casa dele está lá até hoje, há mais de um século, e eu a freqüentei muito. Então, meu avô tinha muitas propriedades, o próprio prédio da editora…
AI/SI – A editora ficava na própria casa?
Marcelo – Não. Este escritório que estou te falando é um escritório que até poderia ser uma empresa grande, mas era o escritório particular do meu avô. O da editora era um prédio na rua Tabatingüera, um prédio grande. A revista era muito forte economicamente.
AI/SI – Nos primeiros números havia muito de entomologia, que me parece era para ser o foco dela.
Marcelo – Na verdade, ele teve uma revista sobre entomologia chamada O Entomologista Brasileiro porque este era o tema de estudo dele. Meu avô era um cientista de renome. Ele veio para o Brasil para colaborar com o Oswaldo Cruz na questão da febre amarela. Ele conheceu o Oswaldo Cruz na Europa, que ainda era um jovem médico sanitarista e que aqui adotou um programa contra a febre amarela, que tem como vetor um mosquito. Então ele convidou o meu avô, que era um grande especialista em insetos, para trabalhar no Instituto Manguinhos [no Rio de Janeiro]. Por isto que ele veio para o Brasil.
AI/SI – E quando ele entrou no mercado editorial?
Marcelo – É uma curiosidade porque ele era cientista. Aqui no Brasil, antes de fazer O Entomologista Brasileiro, ele chegou a ser repórter do jornal Fanfulla, que era um jornal escrito em italiano editado no Brasil. Mas o meu avô falava uma dúzia de línguas, até chinês porque ele morou na China. Ele era absolutamente fora do comum, porque imagine uma pessoa se meter a fazer uma revista em outro país. Nos primeiros números de Chacaras e Quintais o meu avô escrevia muito e ele tinha um poder fantástico de comunicação com o homem do campo e em português. Aliás, teve um colaborador do meu avô chamado José Reis, que hoje é referência na divulgação científica, que é considerado o primeiro divulgador científico do Brasil. Um título que ele próprio em vida recusava. “Eu sou o segundo. O primeiro foi o conde Barbiellini”.
AI/SI – O Sr. conheceu o José Reis?
Marcelo – Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. Depois do rompimento de meu pai [com o conde], não que o José Reis tivesse acompanhado meu pai ele continuou amigo dos dois mas ele freqüentava muito a nossa casa. Inclusive porque éramos vizinhos. Eu morava na Joaquim Távora na época em que meu pai teve o atrito com meu avô e saiu da Chacaras e Quintais.
AI/SI – Como foi isto?
Marcelo – O meu pai era o filho mais velho. Meu avô teve 11 filhos, sendo 9 mulheres e 2 homens, e meu pai era o primogênito. O outro irmão era bem mais novo, tanto que meu pai foi padrinho de nascimento dele. Então meu pai era quase que o continuador natural do meu avô. E meu avô pediu à meu pai para estudar agronomia na Luiz de Queiroz, em Piracicaba, exatamente com o objetivo dele assumir a direção da Chacaras e Quintais depois. Quando meu avô o chamou, disse que ele nem precisaria concluir o curso e, de fato, meu pai assumiu a direção da revista com o meu avô vivo, presente, e de certa forma atuante. Só que meu avô ficava mais na praia passava meses nesta propriedade na praia das cigarras e meu pai que tocou o dia a dia da editora. E onde surgiu o rompimento foi que meu pai era bem mais jovem, tinha feito agronomia e começou a imprimir, ou querer imprimir, como diretriz da revista uma visão mais moderna, mais industrial da nova agricultura brasileira.
AI/SI – Quer dizer, seu pai tinha uma visão diferente da revista.
Marcelo – É… A revista do meu avô era voltada para o pequeno proprietário, tanto que o nome Chacaras e Quintais era coisa de minifúndio. E meu avô tinha muita comunicação com o homem do campo, o pequeno proprietário. O meu pai quis imprimir à revista uma visão industrial de uma agricultura mais pujante e meu avô não aceitou esta proposta. Como meu avô não aceitou esta nova linha, meu pai se desligou [em 1952] e foi fazer uma revista como ele achava que devia ser e fundou a Mundo Agrícola, que como o próprio nome já diz, trazia uma visão mais abrangente.
AI/SI – A Mundo Agrícola teve vida longa?
Marcelo – O meu pai teve um problema com a revista dele. Ele não teve “bala”, não tinha munição [financeira] para encarar a própria Chacaras e Quintais, que era uma potência e concorrente. Mas não foi o que muita gente falou, uma traição. Foi só uma questão de nova visão. A concorrência era natural, de maneira que houve o rompimento claro que deixou mágoas de lado a lado mas não foi nada pessoal.
AI/SI – Os dois não se afastaram?
Marcelo – Não. Foi uma discórdia profissional e não de outra ordem. Meu pai adorava meu avô e continuou a se dar bem com ele – e nós todos – até a sua morte. A revista do meu pai era uma revolução, porém não tinha a mesma estrutura de uma Chaquita [como era conhecida a Chacaras e Quintais]. E havia uma mágoa do meu pai porque ele queria ter feito isto com a própria Chacaras e Quintais. Aí depois o seguidor do meu avô foi o Oswaldo Gessulli, que estava mais afinado com esta visão tradicionalista do meu avô, mas a própria editora Chacaras e Quintais, daí por diante, acabou se rendendo a esta outra visão. Ela acoplou o nome Avicultura Industrial, depois ficou só Avicultura Industrial e aí acabou abafando o Chacaras e Quintais, porque ficou um nome quase que folclórico.
AI/SI – O Sr. conheceu o Velho Gessulli?
Marcelo – Conheci. Inclusive a despeito do rompimento, o meu pai gostava muito dele e acho que a mesma era recíproca. O Gessulli era uma figura muito simpática, mas claro que eu não tive tanto contato porque eles passaram a ser concorrentes. Mas eles, até onde eu saiba, morreram amigos. Eles se falavam por telefone. Em casa eu avisava o pai: Ligou o Gessulli. Ah, tá. Eu preciso falar com ele. Era meio constante esta troca. E eles eram meio assim… concorrentes cordiais.
AI/SI – Voltando a falar do conde, ele já veio casado da Itália?
Marcelo – Ele casou e veio pra cá. Na verdade ele também teve um rompimento com a família dele lá porque minha vó não era de família nobre. Conta a lenda que ele teria deixado uma noiva, imposta pela família, na igreja. Aí acho que era história dele, mas ele fugiu mesmo e veio para cá. Isto na segunda vez, porque na primeira ele tinha vindo para trabalhar com o Oswaldo Cruz.
AI/SI – Ele veio para o Brasil, depois voltou para a Itália.
Marcelo – Voltou para a Itália. Ele dizia que tinha esquecido o guarda-chuva aqui no Instituto Manguinhos, por isto casou com a minha vó, abriu mão do que tinha lá e rompeu com a família, vindo para o Brasil. E, depois, nunca mais saiu daqui. Mas ele já tinha morado inclusive na China durante a guerra dos Boxers(1).
AI/SI – Me conta como foi isso.
Marcelo – Ele foi como voluntário para a China durante a guerra. A função dele era servir de intérprete para as forças de vários países da Europa que estavam lá. Tem um filme interessantíssimo chamado… 100 dias em Pequim… [55 dias de Pequim(2)], mas meu avô era fluente em todas as línguas e era do Estado Maior. Agora, a guerra dos Boxers durou pouco, uns dois meses, e aí as tropas foram embora, mas ele ficou na China e comprou um professor, acredita nisto?
AI/SI – Comprou um professor?
Marcelo – É, porque era um tipo de escravo que era denominado um sábio, este de barba branca. Ele comprou e alforriou na hora este professor com quem conviveu anos, que era amigo dele. Ele me falava muito deste mestre e eu achava uma coisa extraordinária. Então, meu avô contava cada história que eu ficava extasiado. Senti muito a morte dele.
AI/SI – Ele devia ser uma figura fascinante realmente.
Marcelo – Pra você ver. Quando eu entrei na TV Cultura em 1969 havia um iluminador que a gente chamava de Ziembinsky em referência a um grande nome da televisão, na área do teatro. E este outro Ziembinsky, o iluminador, fez a iluminação do primeiro programa da história da televisão brasileira. Era um cara bem velhinho e viu lá meu nome e veio me procurar. Queria saber filho de quem eu era. E perguntou se eu era filho do Marcelo e eu falei: Você conhece meu pai? “Não pessoalmente.” Mas ele sabia o nome de todos os irmãos do meu pai. “O seu avô, o conde Barbiellini, eu cheguei a ver uma vez”, ele me disse. A família dele era de lavradores, humilde, e tinha meu avô – e seus familiares – como deuses terra por causa da Chacaras e Quintais. Ele dizia que a família dele ficava na dependência de chegar a Chácaras e Quintais. Sabia tudo da minha família, até me levou no armário dele lá no vestiário e a tampa, a porta do armário pelo lado de dentro, tinha um monte de fotografia da minha família, coisas recortadas de Chacaras e Quintais e eu fiquei muito honrado com isto.
AI/SI – Qual a imagem que o Sr. guarda de seu avô?
Marcelo – A lembrança que eu tenho do meu avô é de um cara um pouco distante. Ele era um pouco cheio de mesuras na família, mas era uma pessoa muito carinhosa e muito preocupada com a educação. Dos filhos nem se diz, mas dos netos também. Por exemplo, este brinquedo que ele me deu e mudou minha vida: o Poliopticon. Então começou com o meu avô. Ele tinha uma cultura extraordinária. Imagine, ele falava acho que nem 12, eram 14 línguas com fluência, histórias incríveis. Ele contava histórias da China e fascinava. Ele teve uma vida muito rica. É um daqueles heróis do passado. Pioneiro, que a gente imagina até hoje fazendo a história.
Conheça mais 1- Guerra dos Boxers- Revolta nacionalista chinesa contra o domínio estrangeiro comandada pela Sociedade Harmoniosos Punhos Justiceiros (Sociedade dos Boxers). Eles iniciaram a revolta e contaram com forte apoio popular, promovendo ataques e rebeliões. Em 17 de junho de 1900 eles sitiam Pequim. No dia 14 de julho uma coalização formada por Reino Unido, EUA, França, Japão, Rússia e Alemanha ocupa a capital chinesa. Com a derrota dos Boxers, é imposta à China pesadas indenizações de guerra e facilidades comerciais em troca de sua manutenção territorial. Mesmo assim, Alemanha, Rússia, Japão e França anexaram diversos territórios chineses. 2 – 55 Dias de Pequim (55 Days at Peking) – Filme de Nicholas Ray, 1962, com Charlton Heston, Ava Gardner e David Niven. |