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Nanotecnologia

Revolução Invisível

<p>Brasil já conta com rede de pesquisa aplicada ao agronegócio. Aplicação na produção de alimentos deve ser o grande "divisor de águas".</p>

É um trabalho minucioso, repetitivo e (literalmente) invisível. Mas nele está uma das grandes apostas do setor agropecuário para os próximos anos. Enquanto você lê este texto, quase cem cientistas de universidades e centros de pesquisa brasileiros dedicam-se a aplicações da nanotecnologia no campo, a ciência da reorganização de moléculas e átomos numa escala impensável para a maioria dos mortais – 1 bilhão de vezes menor que o metro.

As pesquisas estão concentradas sobretudo no desenvolvimento das chamadas “língua” e “nariz” eletrônicos, sensores que mimetizam o trabalho do homem em tarefas tão díspares como a medição da umidade do solo e da maturação de frutos até a detecção de bactérias em derivados do leite ou da febre aftosa no rebanho bovino. Em outras frentes, os cientistas desenvolvem plásticos comestíveis para embalagens de alimentos, nanofibras de celulose a partir do bagaço de cana e ainda nanopartículas magnéticas para a descontaminação de pesticidas em água.

Tudo isso, acredita-se, tornará as respostas da indústria mais rápidas e com um custo significativamente menor que as técnicas disponíveis hoje no mercado. “A nanotecnologia será uma revolução no campo”, sentencia Luiz Henrique Mattoso, chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Instrumentação Agropecuária, em São Carlos (SP).

Mattoso lidera uma força-tarefa de 17 unidades da Embrapa e outras 15 universidades, federais e estaduais, reunidas na Rede de Pesquisa em Nanotecnologia Aplicada ao Agronegócio. Formada em 2006, a rede é o maior grupo voltado às pesquisas com nanotecnologia para o setor agropecuário atuando no País.

De acordo com o pesquisador, a ideia nasceu na esteira de um projeto nacional da Embrapa sobre os desafios que deveriam ser contemplados pela estatal, com o intuito de trazer o foco dos laboratórios para perto das necessidades científicas brasileiras.

Especializado em polímeros, Mattoso sabe com clareza o potencial desse novo campo de pesquisa. Por dois anos, o pesquisador trabalhou no laboratório virtual da Embrapa nos Estados Unidos, onde fez uma prospecção a fundo do que vinha sendo estudado na área naquele país. Apesar das verbas maciças injetadas ali para as pesquisas com nanotecnologia em geral – cerca de US$ 1 bilhão em três anos -, ele diz que, no setor de agricultura tropical, o Brasil não fica atrás.

“Eles investem muito na área eletrônica e de manipulação genética. Mas no setor agrícola estamos “pau-a-pau” “, diz. Para efeito de comparação, o orçamento da rede brasileira de nanotecnologia para agronegócio foi de R$ 13 milhões entre 2006-2009, com aportes da Embrapa, Finep, Capes, CNPq e Fapesp. “Para o Brasil, é muito. É um dinheiro que dá pra gente trabalhar”.

Muito ou pouco, o fato é que os trabalhos avançam no ritmo esperado. Na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), uma das pesquisas mais alavancadas é a da “língua” eletrônica capaz de detectar características indesejáveis na soja para a produção de leite. Segundo especialistas, muitas variedades do grão ainda conferem um gosto ruim ao produto, por isso a necessidade de misturar frutas ao leite.

“Tradicionalmente, a classificação do produto como gostoso ou não é feito por painelistas (degustadores da indústria de alimentos) ou por processos de análise físico-químicos”, diz o pesquisador da USP Fernando Fonseca, cujo trabalho é desenvolvido em parceria com a Embrapa Soja, de Londrina. Além de lento, é um processo mais caro.

Em linhas gerais, o que foi desenvolvido na USP é uma lâmina com contatos de ouro na qual foi depositado um filme nanométrico – o “coração de tudo”, diz Fonseca. Essas várias lâminas são imersas no leite de soja para que, então, os pesquisadores meçam a resposta elétrica do dispositivo e as analisem matematicamente.

“Cada líquido vai ter um resultado diferente. Dessa maneira é possível distinguir cada leite de soja”, explica Fonseca. “Através da língua eletrônica a Embrapa vai saber qual o melhor grão para investir. O desafio é fazer uma classificação mais veloz e barata”. Hoje, a USP tenta chegar mais próximo de um produto comercial que possa ser utilizado pela indústria de alimentos em geral.

Invisível a olho nu, o filme desenvolvido pelos cientistas paulistas tem de 20 a 100 nanômetros de espessura. Imagine isso: um nanômetro corresponde ao tamanho de uma bola de futebol em relação ao globo terrestre.

Em Fortaleza (CE), uma das linhas de pesquisa da Embrapa Agroindústria Tropical chama a atenção não só pelo produto em si como pelo debate que certamente suscitará (ler mais no texto abaixo). Ali, biopolímeros da natureza (polpa de manga, neste caso) são a base dos experimentos para o desenvolvimento de filmes comestíveis para embalagens de alimentos, como frutas. Você come a fruta e o plástico – minimizando, de quebra, um grave resíduo ambiental.

Em São Carlos, no interior paulista, os cientistas do grupo de Biofísica Molecular do Instituto de Física e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Carlos (UFSCar) estudam a aplicação da nanotecnologia para detectar a febre aftosa na população de bovinos. Isso ainda é feito via métodos imunológicos desenvolvidos para quantificar a concentração de antígenos e anticorpos, sendo o principal deles o Leitor Elisa (do inglês Enzyme-linked immuno sorbent assay). É um processo custoso, no qual uma amostra de sangue do animal deve ser encaminhada para análise em laboratório.

“Imobilizamos nanopartículas metálicas sobre circuitos eletrônicos especiais que vão detectar a presença de anticorpos”, diz Valtencir Zucolotto, professor do Instituto de Física da UFSCar. “Se o animal já teve aftosa, ele desenvolveu anticorpos e os nossos sensores detectarão isso”. Dentro de um ano e meio o grupo deverá ter o primeiro protótipo para comercialização. E em dois anos, o kit pronto para comercialização.

Para os produtores, o novo instrumento será um processo mais barato porque os testes de aftosa poderão ser feitos in loco e com resposta imediata. “A nano dará independência para a fiscalização”, diz Zucolotto. No passado recente, a ocorrência da doença levou à interrupção dos embarques de carne bovina brasileira a quase 50 países. Devido a esse episódio, até hoje, a União Europeia impõe restrições ao País.

Aplicação na produção de alimentos deve ser o grande “divisor de águas”

Com um potencial revolucionário ainda limitado apenas pela imaginação dos pesquisadores, a nanotecnologia terá nas discussões científicas acerca de sua aplicação na produção de alimentos a grande batalha que definirá a velocidade de sua aceitação por consumidores mundo afora.

Nada muito diferente da trilha percorrida nas últimas décadas pelos organismos geneticamente modificados (OGMs). Considerados por seus defensores uma extensão natural da Revolução Verde de meados do século passado, os transgênicos começaram a ser adotados comercialmente na agricultura nos anos 90, bem depois que a engenharia genética gerou a insulina humana em laboratório, mas sua disseminação segue cercada de cuidados em diversos países (inclusive no Brasil) – em parte por questões ideológicas e econômicas, mas também por incertezas quanto aos efeitos de seu uso continuado à saúde e ao ambiente.

Ao mesmo tempo em que grandes grupos privados ampliam os investimentos – e os “segredos estratégicos” – em torno da nanotecnologia, com agentes públicos como as universidades a reboque, outros grupos independentes já se formam na investigação de seus potenciais e riscos. E, de acordo com muitos desses especialistas, tendem a florescer motivos para preocupações.

“O debate não pode ficar apenas em nível técnico”, afirma Soraia de Fátima Ramos, pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola (IEA), vinculado à Secretaria da Agricultura de São Paulo. Em parceria com Paulo Roberto Martins, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Soraia é organizadora do livro “Impactos das Nanotecnologias na Cadeia de Produção da Soja Brasileira” (editora Xamã, 2009), uma das iniciativas de se chamar a atenção para a revolução que espreita o campo.

Lançado com o apoio da secretaria e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o trabalho foi costurado com a participação dos pesquisadores Richard Domingues Dulley, Elizabeth Alves e Nogueira, Roberto de Assumpção, Sebastião Nogueira Júnior, André Luiz de S. Lacerda e Marisa Zeferino Barbosa. Dulley, aos 70 anos, tem sido um dos principais fomentadores dessa discussão, abastecendo de dados sobre a nanotecnologia figuras atuantes no setor de agronegócios como o ex-ministro Roberto Rodrigues.

“São imensos os potenciais para a aplicação da nanotecnologia na agricultura. Passam por embalagens, nanosensores e pelo desenvolvimento de alimentos nutracêuticos, entre outras aplicações. Mas há riscos, e o problema para mensurá-los é a ‘invisibilidade’ da nanotecnologia, que decorre do fato dela não ter relação com tecnologias do passado”, afirma Dulley.

Os pesquisadores dividem o avanço da nanotecnologia agrícola em duas frentes: “incremental”, onde as pesquisas buscam melhorar o que já existe e o manancial é rico na agricultura de precisão, e “revolucionária”, aquela “invisível” que exige mais cuidados e, certamente, investimentos. Segundo Dulley, até 2015 a nanotecnologia em geral terá absorvido US$ 1 trilhão em investimentos anuais.

É da frente “invisível” que esta manipulação artificial da matéria na escala das moléculas estudada pela nanociência pode ser surpreendente a ponto de permitir a “conversa do vivo com o não vivo” na forma, por exemplo, de um computador com proteína. Ou na construção de uma fábrica de banana capaz de usar como matéria-prima o quase universal carbono, base da química orgânica presente em todos os seres vivos.

Para Soraia de Fátima Ramos, a nanotecnologia não deixa de ser uma evolução de sistemas técnicos, mas no nível mais sofisticado que o ser humano conseguiu chegar até agora. Segundo ela e Roberto de Assumpção, sua difusão criará espaço para uma mudança nas relações de forças geopolíticas e poderá, se não controlada e profundamente analisada, ser o vetor do aprofundamento das desigualdades entre ricos e pobres e entre países desenvolvidos e em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.

“É preciso perceber que já há produtos [cosméticos, farmacêuticos] no mercado sem sequer estudos toxicológicos suficientemente amplos, e aqui vai um grande alerta”, pondera Elizabeth Alves e Nogueira. Conforme Dulley, um país como o Brasil não pode, por exemplo, deixar de levar em consideração suas características, realidades e vantagens naturais.

Chega a ser assustador para os estudiosos do IPT e do IEA o flagrante desconhecimento de algumas subsidiárias brasileiras de grandes transnacionais sobre o rumo das pesquisas desenvolvidas por suas matrizes. “Fizemos diversas entrevistas e ficou claro que, em muitos casos, as filiais não sabem sequer que as matrizes têm pesquisas nessa área”, diz Dulley.

E esse “lego” em escala atômica, reforça, não podem ficar nas mãos de crianças sem orientação.