O processo de reconfiguração pelo qual vinha passando o setor sucroalcooleiro, marcado pelos investimentos de empresas multinacionais durante a década passada, desenrolou-se com bilhões de reais, atingiu um ápice produtivo e, feito onda, recuou. A surpreendente quebra de safra na última temporada (perdas de 10% na moagem) pontuou o caso.
Hoje estagnados, os negócios em torno da cana-de-açúcar, cultura centenária, em especial no que diz respeito ao derivado etanol, promessa brasileira desde os anos 1970, encontram razões para o receio: clima adverso, crise financeira e, mais à terra, canaviais desnutridos. Também se incluem nos motivos má gestão e logística precária, segundo especialistas.
A paralisia, contudo, sucede a um período de apostas pesadas em fusões e aquisições estratégicas. Os principais exemplos datam de 2010, ano em que a Cosan se fundiu à Shell, criando a Raízen, numa operação de US$ 12 bilhões, e quando a norte-americana Bunge comprou as cinco usinas do grupo Moema, avaliadas em R$ 1,2 bilhão.
“Existia a perspectiva de que esse processo, que se precipitou com a crise mundial, aconteceria num período de dez a quinze anos”, diz o porta-voz, em Ribeirão Preto (SP), da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica), Sérgio Prado. Ele reconhece a ausência quase total de novos negócios e a atribui à falta de crédito e políticas públicas para o setor.
Entre as safras de 2006/2007 e 2007/2008, a presença de multinacionais aumentou de 6% para 25%. Atualmente, quem preside o conselho de administração da Unica é o também presidente da Bunge, Pedro Parente.
A secretária de Agricultura e Abastecimento paulista, Mônika Bergamaschi, considera que as mudanças no mercado sucroalcooleiro tenham se iniciado em 2003, com a chegada ao Brasil do automóvel movido a dois combustíveis, o carro flex. “Então, vieram as multinacionais e mudaram as regras do jogo, completamente”, diz.
Entretanto, o desconhecimento dessas companhias acerca da produção canavieira deram margem a perdas de volume, de acordo com a chefe de pasta. “É um setor com muitas especificidades. Quando se planta cana, casa-se com ela durante seis anos. Não é uma cultura de 120 dias, como o milho e a soja, que, se deu errado, é só arrancar”, ela explica.
O envelhecimento dos canaviais foi o grande motivo utilizado, antes mesmo dos problemas climáticos, para justificar a queda na produção de cana averiguada na safra de 2011/12. Após nove temporadas de evolução constante na colheita, o volume produzido caiu de 620,1 para 558,7 milhões de toneladas, na comparação com 2010/11.
O líder da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Luiz Carlos Corrêa, o Caio, divide a reconfiguração do setor, durante anos de produtividade crescente, em certas ondas: a primeira delas, vinda na mesma época considerada por Mônika, seria o investimento de fundos, como Blackstone, Carlyle e Soros, que depositou R$ 900 milhões em usinas.
A segunda leva de apostas veio com as tradings (Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, por exemplo) e, por fim, chegaram as empresas petrolíferas (Shell, British Petroleum e Petrobras). “Nesse intervalo, passamos a ter a entrada de empresas de tecnologia, via parcerias com grupos empresariais nacionais”, acrescenta Caio.
Há, ainda, uma quarta onda por vir, na análise do representante. São as empresas químicas, cuja relutância em investir na cana, em princípio, se deve à necessidade por “patamares claros de regulação estatal”.
“Acredito que, daqui para frente tudo dependerá de políticas públicas”, prevê Caio, repetindo o clamor geral do setor por uma definição federal, em forma de plano, que oriente e defenda a produção sucroalcooleira no Brasil.
Todo usineiro recorda do Programa Nacional do Álcool, financiado pelo governo militar a partir de 1975, enquanto o mundo buscava fontes de energia alternativas, devido à crise do petróleo. “O etanol passou a ser relevante. Os fundamentos [oferta e demanda] fizeram o setor crescer”, relembra o sócio-diretor da consultoria especializada Job, Júlio Borges.
Os anos 1970 permitiram aos usineiros vestir terno e expor vistosos relógios de ouro pendendo do peito. Trinta anos mais tarde, porém, foi a vez de empresários de iPhone assumirem o setor (sejam estes herdeiros, estrangeiros ou investidores de outros ramos).
E até mesmo esses executivos de perfil contemporâneo já não se sentiriam tão seguros como pareciam estar nos cinco anos de investimentos maciços que ficaram para trás, segundo o especialista João Baggio. “Existem multinacionais que estão se desfazendo de seus ativos”, ele afirma.
“As usinas estão trabalhando descapitalizadas, com margens de lucro muito estreitas ou negativas”, explica. Entre 2007 e 2012, 46 indústrias do tipo deixaram de funcionar no Brasil, segundo a Unica. A maioria destas encerrou a atividade no ano passado.
“Quem aproveitou o boom até 2008, hoje, vê o setor com outros olhos. E não há boas perspectivas a médio prazo”, analisa Baggio, que reforça aquele clamor: “o mais horrível é a não haver uma política nacional”.
O consultor considera “um tiro no pé” o investimento, um dos poucos, realizado recentemente pela ETH Bioenergia, braço de negócios do grupo Odebrecht que despendeu R$ 600 milhões, neste mês, direcionados a canaviais espalhados pelo Brasil.
A companhia, que completa cinco anos em 2012, é propriamente um exemplo de corporações de segmentos econômicos alheios (construção civil, no caso) que decidiram entrar para o negócio da cana. Desde que foi criada, investiu R$ 8 bilhões.
A commodity que não foi – O diretor da MBF Agribusiness, Jair Pires, lista três fatores para explicar o porquê de o etanol não ter se tornado, ainda, uma commodity – o que, segundo ele e outros especialistas consultados pela reportagem era uma expectativa de novos investidores do ramo, nos idos de 2000. Na prática, ele expõe pontos fracos da cadeia.
“O Brasil não se estruturou para o desenvolvimento do setor sucroalcooleiro”, ele afirma, levantando a questão da deficiente e custosa logística nacional. “E os usineiros não evoluíram em termos administrativos”, diz, atribuindo o alto grau de endividamento das usinas, em parte, à ausência de gestões mais eficientes, que reduzissem os custos.
O terceiro – e mais aclamado – fator é a impossibilidade de o biocombustível competir com os preços da gasolina no País. E também do açúcar no mercado financeiro internacional.
Em artigo enviado ao DCI, o professor Marcos Fava Neves, da Universidade de São Paulo (USP), critica a política de preços do governo federal para a gasolina – contribuindo ao clamor setorial, que pede reajuste do preço do combustível petrolífero em benefício do álcool de cana.
O doutor registra que a participação de mercado do etanol nos automóveis, em 2009, chegou a 54%. Porém, com a gasolina no páreo, caiu para 35% neste ano.
“É possível que os investimentos previstos em etanol [pela Petrobras Bioenergia], de quase R$ 2 bilhões até 2015, sejam postergados devido, justamente, à baixa rentabilidade do setor de cana”, escreve Neves.
“Não é o tamanho do mercado que está encolhendo”, alerta, “é a produção”. O professor lamenta que “não é possível recuperar o apagão dos últimos quatro anos”.
Para se tornar uma commodity, avalia Pires, o etanol precisaria ser produzido em maior volume e talvez em mais países. No Brasil, necessitaria de vias logísticas mais eficientes para chegar aos portos.
“Como é possível existir uma commodity que apenas duas fortalezas, os Estados Unidos e o Brasil, produzem, e em níveis que mal abastecem os mercados internos?”, questiona.
O atual nó do setor sucroalcooleiro é preponderantemente uma questão de oferta. Mesmo que tenha havido retração no consumo.