Quando você vai à feira e toma caldo de cana, você pode não se dar conta, mas está consumindo um produto que o Brasil conhece melhor do que ninguém. A cana de açúcar, o etanol e derivados desse cultivo compõem uma área que o país lidera em termos de tecnologia. Embora não pareça, o setor de energia demanda um grande potencial de desenvolvimento tecnológico. E com o etanol, nós viramos referência mundial.
Cultivo antigo
A cana de açúcar é cultivada no Brasil há centenas de anos, mas o etanol só ganhou projeção a partir de 1975. Nesse ano, o governo iniciou o programa Proalcool, que incentivava a pesquisa e o desenvolvimento desse setor.
De acordo com Flávio Castellari, diretor executivo do APLA (Arranjo Produtivo Local do Álcool), a medida era estratégica: naquela época, o mundo passava pelo que ficou conhecido como o primeiro choque do petróleo. Naquele momento, o preço do insumo sofreu um aumento vertiginoso, o que impactou seriamente a economia de países que dependiam desse produto para sua matriz energética.
O Brasil viu na situação uma oportunidade: como a cana – um cultivo no qual o país já tinha séculos de experiência – podia eventualmente se tornar uma fonte de energia, nossa dependência do petróleo poderia ser reduzida. Além disso, desenvolver a tecnologia para tirar energia da cana de açúcar faria do país um líder regional no setor energético.
O investimento compensou. Atualmente, segundo Castellari, o Brasil exporta mais de 675 milhões de toneladas de cana por ano e produz 38 milhões de toneladas de açúcar e 29 bilhões de litros de etanol. Em termos de energia, mais de 100 TWh (terawatts hora) foram gerados pela cana nos últimos dez anos. A usina de Itaipu, para efeito de comparação, gera cerca de 89 TWh por ano.
Vantagens
De acordo com o diretor do APLA, além de ajudar o país a superar a dependência energética do petróleo, o etanol também traz uma série de vantagens sobre ele. A primeira delas é referente ao meio ambiente. Por tratar-se de uma energia renovável, gerada a partir de carbono capturado diretamente da atmosfera (e não do subsolo do terrestre, como o petróleo), o etanol é uma energia muito mais limpa e sustentável que a gasolina e o diesel, por exemplo.
Mas o etanol também tem uma vantagem social sobre a cana de açúcar. Sendo um produto em parte agrícola (já que a cana precisa ser cultivada), ele também gera um desenvolvimento regional interessante para o país. O mercado da cana de açúcar acaba por integrar regiões agrícolas que muitas vezes acabam ficando distantes dos ciclos econômicos que geram desenvolvimento, diferente do que acontece com o petróleo.
Além de ser usado como combustível puro, o etanol também pode ser misturado à gasolina. Isso não gera dano para os carros, embora exija que alguns ajustes sejam feitos na central eletrônica do automóvel. E a tecnologia também favorece o mercado de automóveis mesmo em momentos em que o petróleo – e consequentemente a gasolina – ficam muito caros.
Por volta do ano 2000, o Brasil começou a introduzir os carros flex, que rodavam tanto com gasolina quanto com etanol. Desde então, quase 30 milhões de carros com essa tecnologia já foram vendidos, apesar da desaceleração do mercado de automóveis.
Outros usos
Ainda segundo Castellari, o Brasil agora está desenvolvendo a segunda geração do etanol, ou “etanol 2G”. Trata-se de combustível gerado a partir do bagaço da cana, que normalmente é um subproduto da geração de etanol a partir da cana de açúcar. Mais que isso: a ideia final é permitir a geração de etanol a partir de qualquer tipo de celulose.
As vantagens disso seriam imensas. Isso porque toda usina de etanol já tem bagaço de cana. Essa tecnologia permitiria aumentar a produtividade das usinas sem a necessidade de aumentar a área cultivada. Ela também resolveria o problema do descarte do bagaço – já que ele também seria usado para gerar energia. E as empresas poderiam até mesmo passar a vender a energia excedente para as comunidades próximas.
Essa energia poderia complementar a geração energética das hidrelétricas, já que a colheita da cana acontece justamente na época em que chove menos. Por conta da falta de chuvas, os rios ficam menos cheios, e a geração das hidrelétricas é menor. O etanol 2G entraria em cena justamente nesse momento. Segundo Castellari, se o Brasil usasse toda a cana, bagaço e palha de cana possível, poderia produzir anualmente certa de 128 TWh de energia – mais que a usina de Itaipu.
Bioplástico
Há, no entanto, o risco de que outras formas de energia superem o etanol. Os carros elétricos, por exemplo, são uma realidade cada vez mais próxima. E as energias solar e eólica, por exemplo, também estão se desenvolvendo rapidamente. Isso arriscaria invalidar o investimento das indústrias de etanol. Mas felizmente, mesmo essa situação é facilmente contornável.
Isso porque o etanol também pode ser usado para fabricar o bioplástico, uma versão biodegradável do plástico usado em sacolas e embalagens. Além de ser menos danoso ao meio ambiente, o bioplástico também é menos tóxico e mais fácil de reciclar do que sua alternativa derivada de petróleo.
A Coca Cola é uma das empresas que já utilizam o bioplástico no Brasil. Atualmente, cerca de 30% do plástico de suas garrafas PET é desse tipo. A TetraPak também tem usado essa tecnologia em suas embalagens. No total, apenas cerca de 5% do plástico usado no Brasil é bioplástico, pois ainda é mais rentável produzir etanol, mas a expectativa do APLA é que essa porcentagem aumente nos próximos anos.
Benefício social
Além dessas possibilidades, o etanol também pode ser usado como combustível para aviões também. O Brasil já tem o Ipanema, um avião pequena e de baixas altitudes que voa apenas com etanol, e está pesquisando maneiras de usar esse combustível em aeronaves maiores e que que voem mais alto. E as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro já possuem também mais de 400 ônibus que rodam com biodiesel, uma versão mais limpa do diesel usado na frota tradicional.
Mas o etanol também tem outra vantagem social interessante, segundo Castellari: todos os países que produzem a cana de açúcar em grande quantidade são do hemisfério sul. Muitos deles se encaixam na categoria de países em desenvolvimento, e essa tecnologia lhes permite superar a dependência de um produto cujo preço flutua de maneira bastante perigosa para economias menos maduras. Como tal, ele é uma importante tecnologia de promoção de economias menos favorecidas.
O Brasil, por exemplo, teve bastante sucesso em seu uso. O país conseguiu substituir quase 50% do combustível líquido de seus automóveis leves pelo etanol. E, conforme lembra Castellari, “mesmo que todas essas apostas dêem errado, a gente ainda pode misturar a açúcar da cana com limão e cachaça para fazer caipirinha”.