O Brasil está confortável com a perspectiva da retomada das negociações da Rodada de Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC), porque sempre acreditou que é onde devem e podem ocorrer as grandes barganhas que envolvam agricultura e o acesso ao mercado de bens industriais e serviços.
É o que afirma o novo embaixador brasileiro junto à OMC, Marcos Galvão, que em dois meses no posto participou da negociação do primeiro acordo comercial global em quase duas décadas, o chamado acordo de Bali.
Para o ano que vem, a negociação é sobre a modernização da agenda da Rodada Doha. Galvão deixa claro que a prioridade do país é o relançamento da grande negociação central de Doha, envolvendo acesso a mercados e, em agricultura, eliminação de subsídios à exportação e outras formas de protecionismo agrícola dos países desenvolvidos.
A batalha será forte na OMC entre países desenvolvidos, que planejam negociar regras sobre investimento e concorrência, entre outros, e exportadores agrícolas, como o Brasil. O representante brasileiro não fecha a porta para examinar a introdução de outros temas na agenda de Doha, mas reitera que a primazia está ainda na chamada agenda do século XX.
Galvão foi o principal negociador brasileiro no G-20 financeiro, quando ocupava o cargo de secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, e sinaliza interesse em manter nas discussões da OMC também o tema de oscilações cambiais no comércio.
Ele aborda igualmente a questão dos mega-acordos regionais, a cobrança dos países desenvolvidos para que os emergentes assumam mais responsabilidades nas negociações globais, as diferenças no G-20 agrícola e a necessidade de modernizar os métodos de trabalho na área multilateral. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: O sr. assumiu o posto em 17 de outubro, em plena efervescência que levou ao acordo de Bali. Essa dinâmica vai continuar na OMC?
Marcos Galvão: Dinâmica negociadora sim, mas certamente não no mesmo ritmo que houve nas últimas semanas antes de irmos para Bali, em que não havia noites e fins de semana livres. Mas, sim, as negociações na OMC estão de volta. Esperamos um 2014 de discussões intensas sobre os componentes temáticos da Rodada Doha. Será o ano em que os países vão reexaminar e rediscutir a agenda com vistas ao relançamento da rodada. É uma discussão complexa, porque a prioridade que cada tema terá na agenda é muito importante para o conjunto da rodada. É uma negociação sensível, em que os países vão se colocar com seus interesses e convicções específicas.
Valor: Até que ponto a negociação em Bali foi complicada, próxima do colapso?
Galvão: Houve diversos momentos de impasse. Quão perto se chegou do colapso é difícil dizer, porque houve sempre uma vontade amplamente majoritária de se chegar a um acordo. Houve momentos de impasse que pareciam difíceis de superar, mas nunca a esperança deixou de existir por completo. Como ocorre em negociações, em alguns casos houve uma valorização desses momentos de impasse para reenergizar o processo, reagrupar forças e fazer com que as negociações seguissem em frente.
Valor: Em meio a cada vez mais desafios globais, é preciso modernizar métodos de trabalho numa organização como a OMC?
Galvão: É sempre preciso atualizar processos decisórios. No G-20 de finanças, uma de minhas missões foi negociar a reforma de governança do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Comitê de Basileia, do Conselho de Estabilidade Financeira. Na OMC, o novo diretor-geral, Roberto Azevêdo, já começou a promover mudança dos procedimentos de deliberação, que se tornaram mais inclusivos e envolvem agora sempre, que possível, todos os membros. É óbvio que continua a haver espaço e necessidade para consultas em formato menor. Ninguém questiona isso, desde que desaguem com transparência em formatos maiores. O próprio diretor-geral reconhece que progressos foram feitos, mas é preciso aprimorar os processos de decisão e deliberação em organismos como a OMC.
“O país está confortável com a perspectiva da retomada das negociações na Organização Mundial do Comércio”
Valor: Em todo caso, a cooperação internacional se torna mais precária?
Galvão: Eu não diria isso. O mundo é que é cada vez mais plural. Há enormes diferenças de desenvolvimento, necessidades, aspirações e desafios entre os países, e quanto mais democráticos se tornam os processos de deliberação internacional, mais difícil se torna a construção do consenso e mais claras são essas dificuldades. O que acontece é que a opinião pública internacional tem cada vez mais consciência da diversidade de interesses, das diferenças de posição. Há um excesso de pessimismo nessa avaliação sobre o multilateralismo. Ninguém jamais disse que fazer política multilateral é fácil. O que está acontecendo é que a dificuldade de fazer política multilateral num mundo diverso e plural se tornou mais visível. Mas é melhor ter um mundo onde as decisões se tomam com complexidade e dificuldade, envolvendo todos, do que um mundo onde poucos decidem por todos.
Valor: Pode-se esperar discussão na renovação da agenda de Doha sobre a cobrança dos ricos para que os emergentes assumam mais responsabilidades, o que significaria fazer concessões adicionais?
Galvão: Creio que não. A declaração de Bali é muito clara. O foco das negociações e da retomada do pacote de Bali serão o núcleo básico da Rodada de Doha, ou seja, agricultura, acesso a mercado em produtos não agrícolas e serviços. É a grande negociação que Doha se propôs fazer, dando prioridade aos temas do desenvolvimento. A chamada graduação [de emergentes] não está na mesa. O Brasil cumpre com as responsabilidades que lhe cabem como país em desenvolvimento que é. Esse tema da chamada graduação não estará na agenda que vamos discutir em 2014 com vistas à retomada da Rodada Doha.
Valor: Não parece irrealista esperar que o Brasil e outros emergentes deem a mesma contribuição que países mais pobres?
Galvão: A discussão sobre graduação não tem a ver com a contribuição de cada um. O peso relativo dos países no comércio internacional é diferente. A China é o maior exportador mundial, o Brasil tem seu peso no comércio internacional. Mas isso não altera o fato de que alguns emergentes, apesar de seu tamanho, sigam tendo desafios de deficiência social, de pobreza, de infraestrutura, que são comuns aos países em desenvolvimento. Não se trata de assumir, ou deixar de assumir, responsabilidades que cabem aos países. Mas de reconhecer que, por mais que haja diferenças de estágio de avanço, alguns dos grandes emergentes têm ainda desafios de desenvolvimento de grande escala, que continuam a compartilhar com o grupo de países em desenvolvimento.
Valor: Mas pode-se esperar que os emergentes contribuam mais?
Galvão: Essa não é uma negociação de contribuições. O que se vai negociar no núcleo da Rodada Doha é a eliminação de distorções no comércio agrícola internacional e acesso ao mercado. E cada país entra com o mercado que tem. Um país que tem um grande mercado entra na negociação com um mercado maior do que aquele de países menores.
Valor: O Brasil vai ter de abrir mais que países em desenvolvimento em geral, como potência emergente que é?
Galvão: Não, a questão não pode ser colocada nesses termos. Haverá uma negociação de acesso aos mercados. E não se trata de abrir mais ou menos. Trata-se de chegar no final a um resultado que agrade a todos os países e seja percebido como equilibrado e aceitável para cada um.
Valor: Haverá outros temas na retomada da negociação de Doha?
Galvão: Os temas que estão mencionados na declaração de Bali são o núcleo central da Rodada Doha. E o Brasil considera que são os temas a que devemos dar atenção. Não significa fechar a porta à discussão de outras questões que possam se juntar a eles. Mas é preciso que essas questões, às quais não estamos fechados, não sirvam para reduzir a prioridade que devem ter os temas centrais de Doha, que são os temas pendentes do século XX, onde podem e devem ocorrer as grandes negociações de acesso ao mercado e eliminação de distorções.
Valor: Há algum tema específico que o Brasil gostaria de incluir na negociação?
Galvão: A discussão que nos interessa é agricultura, Nama [produtos industriais], serviços e temas do desenvolvimento.
Valor: O Brasil poderia propor a questão do câmbio na nova agenda?
Galvão: Esse é um tema importante que o Brasil trouxe para discussão na OMC e nenhum país nega os efeitos inquestionáveis do câmbio no comércio internacional. Há reconhecimento do tema do câmbio e faz sentido que permaneça na mesa [de discussões]. Ao mesmo tempo, há um reconhecimento, pela maioria dos membros, de que a primazia do tratamento da questão cambial cabe ao FMI e não à OMC. De qualquer maneira, o fato de o Brasil ter trazido o tema já levou a reavivar a interação institucional entre OMC e FMI, e essa ponte deve se manter e se reforçar.
Valor: Mas não na nova agenda da Rodada Doha?
Galvão: Isso se verá. Mas faz sentido que o tema se mantenha na mesa [de discussões na OMC].
Valor: Paralelamente, alguns países querem continuar com acordos plurilaterais (adesão opcional) para acelerar a liberalização em determinados setores. O Brasil não participa de nenhum. O país continuará a ignorar esse tipo de acordo?
Galvão: O nosso foco está nesse momento na retomada da Rodada Doha. Há uma perspectiva que foi reforçada pela conferência de Bali, será nosso objetivo prioritário, e espero que também da maior parte da comunidade internacional.
“Sempre houve diferenças no G-20, os países têm escalas e vocações distintas em agricultura, mas não há racha”
Valor: Como fica o G-20 agrícola, coordenado pelo Brasil, onde boa parte dos membros pede o direito de dar mais subsídio agrícola, apoiando-se em segurança alimentar?
Galvão: Eu não diria isso. A questão de segurança alimentar é especifica, diz respeito à necessidade que alguns países têm de proteger seus programas de compras públicas de estoques contra eventual acionamento no mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Esse objetivo foi alcançado com a decisão que estabeleceu a cláusula de paz em Bali. E o que se programou fazer daqui por diante [na OMC] é encontrar uma solução permanente paras necessidades que esses países têm de enquadrar seus programas de segurança alimentar dentro de parâmetros em relação, por exemplo, a preços de referência que foram estabelecidos no passado. Mas há salvaguardas muitos fortes para evitar que os estoques sejam lançados no mercado internacional e derrubem os preços. Esses programas estarão protegidos, desde que não distorçam o comércio. A frase no texto diz apenas isso, distorção de comércio. Se isso ocorrer, deixa de valer a cláusula de paz. E esses países estariam, sim, sujeitos a acionamento como estão hoje.
Valor: Não há nenhum racha no G-20 agrícola entre exportadores latino-americanos e asiáticos, que são principalmente importadores?
Galvão: Não há um racha, há diferenças. O G-20 nunca foi um grupo monolítico. O G-20 apresentou duas propostas na conferência de Bali, e ambas foram adotadas. Sempre houve diferenças no grupo, os países têm escalas e vocações distintas em agricultura, mas não há um racha. A decisão sobre segurança alimentar adotada em Bali, que foi um dos temas de maior complexidade, deu conforto necessário para que os exportadores aderissem a esse consenso. Especificamente sobre os interesses do Brasil, vale recordar que não somos o único grande exportador agrícola da OMC. Outros grandes exportadores agrícolas em desenvolvimento e desenvolvidos concordaram e nenhum deles deixou de aderir ao consenso. Todos consideraram que a salvaguarda lhes dá suficiente conforto.
Valor: Com relação aos mega-acordos, como Parceria TransPacífico (TPP) e TIPP (EUA e União Europeia), qual sua percepção e o impacto sobre o Brasil?
Galvão: São processos em andamento, em estágio distinto de maturação. O TPP está um pouco mais adiantado. Mas a conclusão desses acordos ainda não está dada e nem necessariamente no horizonte próximo. É óbvio que eles são dados relevantes do cenário comercial internacional. Não se pode desconsiderar a importância dessas duas negociações, mas ao mesmo tempo parece prematuro especular sobre o impacto que poderão ter, dada a ausência de resultados e de perspectivas mais precisas sobre o que serão. É evidente que, visto o peso relativo no comércio internacional dos países envolvidos, são processos importantes, mas é cedo para examinar o impacto, seja para o panorama comercial global seja para o Brasil.
Valor: Alguns analistas falam de desastre para o Brasil, considerando que, com esses acordos, as próprias disciplinas da OMC ficam pífias, cheias de exceções. Apostar só no multilateralismo é o correto?
Galvão: Exceções há em todas as negociações comerciais. Alguns países, para entrar no TPP, acordaram previamente exceções antes mesmo de aderir à negociação. Prefiro não entrar nessa discussão, que hoje está muito em voga, de multilateralismo versus mega-acordos regionais. Os dois caminhos não se excluem. A discussão é válida, é importante que aconteça, mas nem sempre tem o nível de precisão e objetividade que seria necessário. E não é só no Brasil. Eu vi essa discussão em outros países, mas é preciso que ocorra não de forma especulativa e até ideológica. O importante é manter a primazia no sistema multilateral de comércio e do único foro global, que é a OMC para o comércio mundial. Somente na OMC será possível negociar acordos que abranjam a todos e gerem regras globais comuns.
Valor: A atuação do Brasil na OMC hoje é mais dificultada pela atual política comercial do país, vista como mais protecionista?
Galvão: De modo algum. Basta ver a atuação do Brasil na negociação que levou ao pacote de Bali. Não é verdade que o Brasil seja um país protecionista. E o Brasil atuou de maneira construtiva, positiva e propositiva em toda a negociação. O acordo de facilitação de comércio, por exemplo, sempre foi percebido pelo setor privado e pelo governo como objetivo valioso a alcançar. Esse acordo vai exatamente na contramão do fechamento, visa facilitar procedimentos aduaneiros. E sua obtenção tinha respaldo consensual no Brasil
Valor: O Brasil está confortável hoje para negociação de acesso ao mercado, em meio à percepção de mais proteção?
Galvão: O Brasil deixou muito claro na negociação que nos levou a Bali, e em Bali, que o país está, sim, confortável, com a perspectiva da retomada das negociações na OMC, que é onde sempre acreditamos que devem e podem ocorrer as grandes barganhas que envolvam agricultura, bens não agrícolas e serviços.
Valor: O setor privado brasileiro hoje está mais engajado em negociar liberalização?
Galvão: O setor privado há muito tempo está engajado. Para citar um exemplo, a Confederação Nacional da Indústria se manteve engajada nesse processo ao longo dos últimos meses e se manifestou claramente com os resultados alcançados em Bali e com o que isso significa em termos de retomada da negociação na OMC.
Valor: E deve estar se preparando para futura abertura do mercado brasileiro?
Galvão: Não posso falar pelo setor privado brasileiro, mas o fato é que o setor privado está presente e confiamos que estará participando ainda mais das discussões com vistas a definir as posições negociadoras do Brasil.