Boa parte dos grandes e médios consumidores de energia elétrica optou por ter seu próprio fornecedor – geradores ou comercializadores -, abdicando do serviço público oferecido pelas concessionárias de distribuição. Desse modo, passou a integrar o chamado mercado livre. Nessa situação, os preços e condições contratuais para aquisição de energia são livremente negociados, como uma atividade econômica qualquer, ainda que continuem a utilizar o serviço público regulado no que se refere ao transporte dessa energia, prestado pelas distribuidoras ou, em alguns casos, pelas transmissoras em tensões mais elevadas, em que se encontram conectados.
Às concessionárias de serviço público de distribuição não é dada opção quanto a seus fornecedores. Essas têm que atender a regras definidas pelo governo federal. Por exemplo, as energias caras das usinas nucleares 1 e 2 de Angra dos Reis, da Usina Hidrelétrica de Itaipu ou de térmicas, imprescindíveis para a segurança do sistema interligado nacional, fazem parte do portfólio de aquisição de energia das distribuidoras, que repassam os custos para os consumidores do serviço público regulado. Os preços para aquisição pelas distribuidoras podem variar de R$ 70,00 a R$ 200,00 por megawatt-hora (MWh).
A migração gradativa e crescente de consumidores para o mercado livre vinha provocando efeito perverso ao longo dos últimos anos, com aumentos tarifários sempre acima da inflação para o serviço regulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), devido principalmente:
– A subsídios cruzados nas tarifas de iluminação pública, rural e de irrigação, dentre outras, que acabavam sendo rateados por número cada vez menor de consumidores remanescentes;
– À saída de consumidores para o mercado livre, gerando excesso de contratação à distribuidora, acima do limite de 3% possível de ser repassado para as tarifas. A solução para evitar o prejuízo era se desfazer da energia mais barata do seu portfólio, de acordo com o art. 29 do Decreto nº 5.163/2004, o que implicava aumento das tarifas para seus consumidores remanescentes.
Acertadamente, a Medida Provisória (MP) 579, aprovada e que aguarda sanção presidencial, que implementará a partir do início de 2013 a prorrogação das concessões e redução de tarifas, cujos custos despencarão para menos de R$ 23,00 por megawatt-hora, alocou toda a energia amortizada para o serviço regulado das distribuidoras, contrabalançando os efeitos perversos com a migração para o mercado livre.
Houve uma grande mobilização de interessados junto ao Congresso Nacional, reivindicando mudança na MP para que o governo federal repartisse uma parcela da energia amortizada também para os consumidores que compõem o mercado livre, uma vez que o segmento não se contentava apenas com a significativa redução de custos de uso dos sistemas de distribuição e transmissão.
Há de se ressaltar a eventual possibilidade de o governo federal fornecer parte da energia amortizada para quem escolheu livremente seu fornecedor. Além de contraditória, essa iniciativa se caracterizaria como intervenção em área econômica. Questiona-se: repartir que montante e para quem, sendo o mercado muito variável ao longo do tempo? Não se apresentavam aqui os indispensáveis requisitos da ação administrativa do Estado: universalidade, impessoalidade e transparência. Sem contar que outra mobilização dos representantes do mercado livre é para reivindicar a possibilidade de revender o excesso de contratação. Esse pleito já foi acolhido pelo relator da MP, senador Renan Calheiros (PMDB/AL), o que poderia se transformar numa boa oportunidade de ganhos especulativos e não interessaria à modicidade tarifária.
Ainda mais contraditório seria oferecer para o mercado livre só o “filé”, ficando a “carne de pescoço” com o serviço público. Assim, em eventual repartição de cotas de energia para o mercado livre, por justa razão, deveria se colocar na mesma cesta, além do bem amortizado, as energias de Angra dos Reis, de Itaipu e das térmicas, por exemplo.
Não se pode negar o valor dos consumidores livres que equacionam a sua energia e podem estar viabilizando novos empreendimentos de geração, como pequenas centrais hidrelétricas ou fontes alternativas, tais como as provenientes da biomassa ou eólica.
Tem-se ainda segmento de consumidores livres que, em razão de seus processos produtivos complexos, requerem uma qualidade de serviço que minimize ao máximo qualquer tipo de interrupção, de forma que montam um sistema de autoprodução com uma segurança operativa que pode vir a ser bem superior à oferecida pelo serviço público. Quem viabiliza sua própria energia, sem dúvida, está contribuindo para o desenvolvimento do país, uma vez que o esforço governamental pode ficar focado para o serviço público regulado.
O mercado livre, entretanto, não está conseguindo afastar de seu meio uns poucos “aventureiros” que desaparecem e reaparecem para se apropriar de expressivos lucros que o mercado livre ocasionalmente propicia, ao mesmo tempo relevando os riscos envolvidos para quem não se resguarda com contratos de longa duração. A inadimplência superior a 20% da liquidação do mercado de curto prazo nos últimos dois meses é uma constatação da irresponsabilidade que permeia alguns poucos participantes do mercado. A vulnerabilidade é oferecer a possibilidade de se ganhar muito dinheiro quando o Preço Liquidação de Diferenças (PLD) é baixo e, a seguir, “dar calote” quando é alto, ocasionando grandes prejuízos para agentes do setor elétrico, inclusive para aqueles que sequer atuam no mercado livre.
Criar uma nova referência de tarifas reguladas de energia já é um forte indutor para que as tarifas no mercado livre também sejam rebaixadas. A consolidação do mercado livre é necessária. A expectativa é que possa ser feita com sua autodepuração e sem intervenção do governo federal na atividade econômica desenvolvida.
Carlos Augusto Ramos Kirchner é consultor de energia e diretor do Seesp (Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo).