Na primeira entrevista concedida após tomar posse dia 14, como presidente da República Popular da China, Xi Jinping disse que “o mundo está mudando e a China também está mudando” em direção ao “socialismo com características chinesas”. O presidente chinês afastou qualquer temor em relação a pretensões hegemônicas da China, comprometeu-se com as reformas econômicas e políticas do país e disse que há um longo caminho a percorrer até a China ser um país “rico e forte”.
A entrevista, que precede a 5ª reunião dos Brics no fim do mês, em Durban, na África do Sul, foi carregada de simbolismo. Um jornal de cada país dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi convidado a participar. O jornal brasileiro escolhido foi o Valor. De Durban, Xi espera que saia, para a comunidade internacional, uma “mensagem positiva de unidade, cooperação e resultados” dos países emergentes.
Sua primeira viagem ao exterior também obedecerá a essa prioridade estratégica. Xi irá primeiro à Rússia, no dia 22, em seguida à Tanzânia, de lá para a África do Sul – onde ocorrerá o encontro dos presidentes dos Brics -e, por fim, à República do Congo.
China e África “são como uma família”, China e Índia formam uma população de 2,5 bilhões de habitantes e têm “uma cooperação tradicional”, China e Brasil são os maiores mercados emergentes do Oriente e do Ocidente, se beneficiam mutuamente do desenvolvimento das suas economias e têm contribuído para uma ordem internacional mais “justa”. A importância da Rússia é retratada na primeira viagem que fará como presidente da China, o primeiro líder da geração pós-1949 – ano da fundação da República Popular da China.
“Muitos mercados emergentes de países em desenvolvimento, inclusive os Brics, têm tido rápido crescimento econômico e se tornado uma importante força pela paz mundial e pelo desenvolvimento comum”, disse o presidente chinês.
Pouco antes da entrevista, concedida em um dos salões do Palácio do Povo, Xi teve um encontro com o secretário do Tesouro americano, Jacob Lew. A ele, conforme relatou, falou da importância de a nova ordem mundial reconhecer e refletir, na sua governança, a posição de relevo dos mercados emergentes. Outro grande desafio do líder chinês será combater a corrupção enfronhada no Partido Comunista Chinês (PCC).
A seguir, a íntegra da entrevista, resultado de um trabalho da diplomacia chinesa para mostrar um presidente moderno e comprometido com o “rejuvenescimento” da mais antiga civilização do mundo.
Pergunta: A Rússia será o primeiro país que o senhor visita como presidente da China. Qual é o motivo dessa decisão e como o senhor vê a Rússia?
Xi Jinping: De modo recíproco, a China e a Rússia são parceiros de coordenação estratégica de maior peso e importância. Tanto para a China como para a Rússia, o relacionamento bilateral ocupa uma posição prioritária na diplomacia geral e nas políticas externas. A minha visita à Rússia, o nosso vizinho amigo, logo depois de assumir o cargo de presidente, é uma prova da alta importância que a parte chinesa atribui às relações sino-russas. Sob os esforços constantes de ambas as partes nos últimos 20 anos, o relacionamento sino-russo já passou a ser parceria de coordenação estratégica global. Foram resolvidas completamente as questões fronteiriças legadas pela história. A base das relações políticas é mais sólida e os dois lados têm se apoiado mutuamente nas questões de interesse comum. O volume do comércio bilateral aumentou 14 vezes nas últimas duas décadas, batendo o recorde de US$ 88,2 bilhões no ano passado, e a cooperação nos projetos estratégicos de grande escala ganha força, principalmente nos setores de energia, investimentos, aviação e indústria aeroespacial. Nossas colaborações estratégicas no cenário internacional são estreitas, o que tem contribuído para promover o processo de democratização das relações internacionais. O relacionamento sino-russo já se encontra numa nova fase, na qual cada parte fornece importantes oportunidades de desenvolvimento para a outra parte e considera a outra parte parceiro prioritário. Na próxima etapa, as tarefas importantes no desenvolvimento das relações sino-russas são: primeiro, consolidar a confiança mútua de natureza estratégica e política e reforçar o apoio recíproco nas questões relativas aos interesses da outra parte. Em segundo lugar, ampliar a cooperação pragmática, como, por exemplo, atingir com antecedência a meta de elevar o comércio bilateral a US$ 100 bilhões até 2015, estabelecer a parceria estratégica na área de energia, implementar projetos estratégicos de grande escala e aprofundar o intercâmbio na área humanística. Em terceiro lugar, estreitar ainda mais a colaboração nos assuntos internacionais e regionais, defender firmemente os princípios da Carta das Nações Unidas e as normas fundamentais das relações internacionais, salvaguardar os resultados da Segunda Guerra Mundial e a ordem internacional pós-guerra, assegurando a paz, a segurança e a estabilidade mundial. Afinal, a China e a Rússia têm tanto a confiança como a capacidade para transformar as vantagens criadas pelo alto nível das nossas relações políticas em frutos concretos da nossa cooperação pragmática, que se traduzirão em benefício para os nossos povos.Os povos chinês e russo possuem uma longa tradição de amizade, com uma base profunda de intercâmbio humanístico. Li muitas obras russas quando era jovem, Pushkin, Lérmontov, Turgueniev, Dostoiévski, Nekrasov, Tolstoi, Tchekhov, Sholokhov. As obras deles nos marcam muito.
Grande ou pequeno, forte ou fraco, rico ou pobre, todos os países africanos são alvos de grande atenção da China “
Pergunta: Há 15 anos, a China e a África do Sul estabeleceram relações diplomáticas. Qual é a sua avaliação e quais são suas expectativas em relação às relações bilaterais?
Xi: Há uma amizade profunda entre o povo chinês e o povo sul-africano. Ainda durante a luta contra o apartheid, o povo chinês já estava firmemente ao lado do povo sul-africano. Ao longo dos 15 anos desde o estabelecimento das relações diplomáticas, as relações entre a China e a África do Sul têm conseguido saltos históricos, passando da parceria para a parceria estratégica global. Como países de mercado emergente e em desenvolvimento, a China e a África do Sul consideram a outra parte como oportunidade de desenvolvimento e pilar importante na própria estratégia diplomática. Estou na expectativa de trocar opiniões com o presidente Zuma de forma aprofundada na minha visita à África do Sul e antecipo meus votos pelo sucesso da 5ª cúpula dos Brics.
Pergunta: Qual será o papel da China no processo de desenvolvimento pacífico na África? Além dos recursos naturais, quais são os outros setores que interessam à China?
Xi: A China e a África são membros da mesma família. Conhecemos muito bem os nomes dos antigos líderes africanos e as belas histórias que simbolizam a amizade sino-africana, tal como a ferrovia Tanzânia-Zâmbia. Nos últimos anos, o relacionamento sino-africano tem obtido avanços significativos a partir de uma amizade tradicional. Ao se engajar no seu próprio desenvolvimento, a China tem sempre prestado apoio à paz e ao desenvolvimento da África e defendido a posição dos países africanos nos foros internacionais. A cooperação sino-africana tem sido condizente com a elevação de status internacional dos países africanos e com o aumento de atenção da comunidade internacional na África. No futuro, independentemente das circunstâncias internacionais, a China continuará, como sempre, a defender a paz e estabilidade da África, promover a sua prosperidade e desenvolvimento, apoiar a sua união e fortalecimento autônomo e impulsionar a sua participação nos assuntos internacionais em pé de igualdade. Empilhado, o solo se transformará na montanha. Acumuladas, as gotas de água formarão o mar. Grande ou pequeno, forte ou fraco, rico ou pobre, todos os países africanos são alvo de grande atenção da China no desenvolvimento de relações amistosas. Ricos ou não em recursos naturais, são tratados em pé de igualdade pela China, que desenvolve com eles uma cooperação pragmática de benefícios recíprocos e ganhos compartilhados.
Ao longo desses 20 anos, o relacionamento entre China e Brasil tem obtido avanços significativos”
Pergunta: Quais serão as políticas da nova liderança da China em relação à Índia? A China mudará suas posições na solução das questões fronteiriças com a Índia?
Xi: A China e a Índia têm um relacionamento tradicional de amizade e são também os dois maiores países em desenvolvimento no mundo, cuja população total ultrapassa 2,5 bilhões. É interesse comum da China e Índia que os dois países caminhem juntos no caminho de desenvolvimento pacífico e de cooperação, o que traz também grande benefício para a Ásia e o mundo. Nos últimos anos, sob os esforços conjuntos de ambas as partes, as relações entre a China e a Índia têm conseguido avanços significativos. As duas partes têm consolidado um relacionamento no qual as divergências são tratadas de forma apropriada e se busca o desenvolvimento comum. Atualmente, tanto a China como a Índia estão passando por um período de desenvolvimento acelerado, o que cria mais oportunidades para o fortalecimento da cooperação de benefícios mútuos entre os dois países. As duas partes devem tirar proveito dessas oportunidades para avançar a cooperação e o intercâmbio com passos firmes, e elevar o relacionamento para um novo patamar. Primeiro, é preciso manter uma comunicação estratégica para dominar bem o rumo das relações bilaterais. Segundo, é preciso aproveitar as vantagens complementares e alargar a cooperação de benefício recíproco nas áreas de infraestrutura, investimento etc. Terceiro, deve-se estreitar os laços culturais e aprofundar o conhecimento mútuo e a amizade entre os dois povos. Quarto, se deve ampliar a coordenação e cooperação nos assuntos multilaterais, a fim de salvaguardar os direitos e interesses legítimos dos países em desenvolvimento e enfrentar em conjunto os desafios globais. Quinto, se deve tomar em consideração as preocupações de interesse da outra parte e resolver apropriadamente os problemas e divergências existentes entre os dois países. Como os chineses costumam dizer, uma causa boa sempre passa por muitas adversidades. As questões de fronteira entre a China e a Índia são legados complicados da história, cujas soluções não são fáceis. Desde que insistamos em consulta amigável, sempre poderemos encontrar soluções justas, aceitáveis para ambas as partes. Antes da resolução final das questões fronteiriças, devemos salvaguardar juntos a paz e estabilidade nas zonas fronteiriças, para que tais questões não afetem o desenvolvimento geral das relações bilaterais.
Pergunta: Como a China pretende intensificar a cooperação econômico-comercial com o Brasil? A China pretende importar mais produtos brasileiros de alto valor agregado?
Xi: A minha visita mais recente ao Brasil foi em fevereiro de 2009, durante a qual tive uma conversa muito produtiva com o presidente Lula. Depois, ele visitou a China e nos encontramos novamente. Tenho acompanhado de perto a saúde dele e lhe desejo boa saúde. China e Brasil são os maiores países em desenvolvimento respectivamente no Oriente e no Ocidente, sendo também importantes mercados emergentes. A China tem sempre atribuído alta importância ao desenvolvimento da cooperação amistosa com o Brasil. Há 20 anos, o Brasil se tornou o primeiro país em desenvolvimento que estabeleceu uma parceria estratégica com a China. Ao longo desses 20 anos, o relacionamento sino-brasileiro tem obtido avanços significativos, trazendo enormes benefícios para os dois países, criando oportunidades para o desenvolvimento de cada lado, como também contribuindo para que a ordem e o sistema internacional se desenvolvam na direção mais justa e equitativa. Nesse momento, o relacionamento sino-brasileiro encontra-se no seu melhor nível histórico, cujo valor estratégico e global se torna cada vez mais destacado. Na 5ª cúpula dos Brics, que se realizará em breve, vou ter um encontro com a presidenta Dilma Rousseff. Espero trocar opiniões francas com ela sobre como desenvolver o relacionamento dos dois países de forma mais abrangente e aprofundada. A cooperação econômico-comercial é a base material do relacionamento sino-brasileiro. Atualmente, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, enquanto o Brasil é o 10º maior parceiro comercial da China. Nunca, como hoje, os interesses de desenvolvimento dos dois países estiveram tão interligados. A cooperação econômico-comercial bilateral está desempenhando um papel cada vez mais destacado nos nossos respectivos desenvolvimentos econômicos. A parte chinesa está disposta a trabalhar com a parte brasileira para explorar o potencial da complementaridade das duas economias, otimizar a pauta comercial e ampliar as áreas de cooperação. Além disso, as duas partes podem fazer valer as suas respectivas vantagens, estimular a conexão industrial, inovar o modelo de cooperação e elevar o nível de cooperação econômico-comercial em geral. Estou convencido de que, com esforços conjuntos, a nossa cooperação econômico-comercial vai obter avanços substanciais, tanto na escala como na qualidade, o que contribuirá para que os dois países consigam o desenvolvimento sustentável, e também fortalecer a capacidade de se adequar melhor à nova situação do aprofundamento da globalização econômica e resistir aos eventuais riscos da economia internacional.
Continuação da entrevista: “A China nunca buscará a hegemonia”:
http://www.valor.com.br/internacional/3052280/china-nunca-buscara-hegemonia