Depois de 15 anos de uma agenda mais liberal, que incluiu reformas importantes e maior transparência nas regras, retrocessos ocorridos a partir de 2007 tornaram a economia mais frágil a choques externos e domésticos, afirma o vice-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa. Repaginado, o velho desenvolvimentismo, segundo ele, não oferece muito mais do que uma economia “medíocre”, que cresce 2%, 2,5% e que em um ano bom pode chegar no máximo a 3%.
Lisboa contemporiza ao ressaltar que o governo foi acusado de ter escolhido um modelo econômico muito voltado para o consumo, crítica que não lhe parece correta. “O volume de recursos públicos direcionado ao setor produtivo foi bastante significativo em todo esse período, basta olhar o crescimento dos recursos do BNDES”. O que há, diz, é a frustração com o resultado pífio, porque os estímulos parecem ter levado apenas à substituição do financiamento privado pelo público e a muitas distorções microeconômicas.
O principal problema, alerta o economista, é a forma pouco clara como benefícios e privilégios são concedidos, e que, em meio a resultados incertos, correm o risco de se perpetuar. “O exemplo clássico é o da indústria automobilística. É única indústria infante do mundo com direito de se aposentar”. Sobram críticas que vão da Zona Franca de Manaus à política de conteúdo nacional. “É o velho exemplo da meia-entrada. O efeito indireto é que menos gente frequenta o cinema, porque a entrada cheia fica mais cara.”
Em referência ao seu legado na Fazenda, Lisboa diz que é preciso diferenciar dois tipos de intervenção microeconômica, a que busca gerar ganhos de eficiência e produtividade, como a criação do crédito consignado e da Lei de Falências, ambas de sua lavra, e a agenda do subsídio cruzado, cujo efeito colateral é fazer com que alguém pague pela ineficiência de outrem. Um bom começo, diz, é colocar todas as desonerações no Orçamento. “A sociedade está pagando do mesmo jeito. A diferença é que [atualmente] ela não tem consciência disso”. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Temos juro real em alta, dívida bruta oscilando para cima, inflação perto de 6% e crescimento de 2%. Algo deu errado? O quê?
Marcos Lisboa: Acho que o governo, sobretudo depois da crise de 2008, fez aposta no resgate da velha estratégia de desenvolvimento do Brasil nos anos 50 e 70. Uma visão de mundo em que a ação do Estado tem papel central de coordenar decisões de investimento do setor privado, escolher setores a serem protegidos e prover estímulos localizados na tentativa de garantir maior desenvolvimento e crescimento econômico.
Valor: Houve mudança em relação ao governo anterior?
Lisboa: Houve. Essa aposta, esse resgate da velha política, tem duas consequências importantes. Uma macroeconômica, que é a deterioração fiscal. Não voltamos ao que o Brasil já foi no passado, mas certamente estamos piores do que estávamos na década passada e bem piores do que poderíamos estar. Isso tem diversas implicações. Em primeiro lugar, compromete recursos futuros, com a criação de diversas obrigações para os anos à frente. O que quer dizer que todos nós vamos pagar um pouco mais de imposto do que seria necessário. Em segundo lugar, gera pressão sobre política monetária e sobre o câmbio. Tudo isso fragiliza a capacidade de crescimento e torna a economia mais sensível a choques, a problemas no cenário externo e doméstico. É uma economia medíocre, que cresce 2%, 2,5% e que em um ano bom pode chegar a 3%. Essa é uma implicação do resgate do velho desenvolvimentismo.
Valor: E o cenário externo não tem nada a ver com nada disso?
Lisboa: Cenário externo é o vento frio. Pode-se estar mais ou menos protegido. Antes [no período Lula], a gente crescia tão bem quanto os demais emergentes, ou um pouco menos. Hoje, andamos piores do que os demais. Há um grupo de países que sofreu menos, como Chile, Peru, Colômbia, Nova Zelândia e Austrália. E alguns países sofrem mais, como Brasil, Índia, Turquia, África do Sul.
Valor: Qual foi a segunda consequência do resgate da agenda desenvolvimentista?
Lisboa: Distorções microeconômicas. Parte desse projeto se baseia em escolher setores, empresas, projetos a serem beneficiados com privilégios localizados para estimular crescimento. Isso tem uma consequência negativa sobre a produtividade. Ao proteger setores específicos, menos competitivos que seus competidores externos, criam-se uma série de restrições que forçam empresas que compram desse setor a pagar mais caro ou obter insumos e máquinas menos eficientes.
Valor: Esse seria o principal erro da política microeconômica do governo atual?
Lisboa: Claramente, temos visões divergentes. Há um grupo de economistas que defende o velho projeto nacional-desenvolvimentista, com Estado protetor, economia mais fechada, sob o argumento de que, no médio prazo, pode garantir maior crescimento por ganhos de produtividade. Outro grupo defende regras horizontais, transparência, clareza nos benefícios e regras. É um debate legítimo, com argumentos defensáveis dos dois lados. O principal problema é a forma como isso tem sido feito. Os benefícios são concedidos de forma pouco clara, como a regra de conteúdo nacional. Os mecanismos para conceder benefícios contam com pouca transparência, não se estabelece metas para as políticas públicas. A consequência é que não se sabe o que funciona ou não. Como não se sabe quais são os resultados, não há critério de desempenho, elas correm o risco de se perpetuar. O exemplo clássico é o da indústria automobilística. A justificativa geral é que setores precisam de tempo para se desenvolver. No entanto, essa indústria vai fazer 60 anos. É a única indústria infante do mundo com direito de se aposentar. O segundo problema é ficar refém de grupos de interesse. A meu ver, e defendo isso em artigo publicado com Zeina [Latif, economista], essa concessão de privilégios e benefícios não vem apenas em resposta a pressões de grupos de interesse, mas o governo também cria grupos de interesses. Cria indústrias onde não existem. Criou a Zona Franca de Manaus, um polo industrial no meio da floresta com esperança de que depois de algumas décadas pudesse competir em pé de igualdade com resto do país. Má notícia, não conseguiu. Hoje temos capital e trabalho alocados em uma região na qual são menos produtivos que em outras, então precisam de subsídios públicos para se manter. Como se desmonta isso? São pessoas, empregos, naquela região.
“O governo, sobretudo após 2008, fez aposta no resgate da estratégia de desenvolvimento dos anos 50 e 70”
Valor: Mas todo governo não faz política industrial?
Lisboa: Esse é o ponto. Não se pode transformar a discussão em extremos. A questão é quanto faz, como faz, a transparência do processo. A Coreia do Sul também fez política industrial, mas fez política social, educou a população em duas gerações, com orçamento equilibrado. Fez com metas e com abertura e exposição à competição. São coisas que a gente não faz. Como diria um juiz da suprema corte americana, Louis Brandeis [1856-1941], a luz do sol é o melhor desinfetante. Precisamos de uma agenda de maior justiça econômica. Setores e grupos semelhantes tem que ter obrigações semelhantes. A desoneração da folha, por produto, criou complexidade tributária para muitas empresas. Temos hoje 5% do PIB em desonerações fiscais, apenas no governo federal. São grupos e setores que pagam menos impostos que outros. Temos que simplificar. É claro que países fazem política industrial, há bons argumentos para proteção de alguns setores de forma temporária, mas que isso seja feito de forma transparente.
Valor: Como?
Lisboa: Em primeiro lugar, que esteja no Orçamento. Sem benefícios disfarçados. Hoje, no caso do crédito direcionado, temos grupos que pagam 20% de spread, para subsidiar quem paga 3%. O spread médio é 11%. O melhor seria que todo mundo pagasse 11%, e aí se o desejo for que alguns setores paguem taxas menores, então o governo utilizaria recursos próprios para conceder subsídios. Assim, as transferências de recursos, os subsídios cruzados, em vez de ficarem disfarçados na teia do setor produtivo, ficam transparentes. Uma série de transferências mandatórias não passa pelo Orçamento. A sociedade está pagando do mesmo jeito. A diferença é que ela não tem consciência disso. Outro passo é ter avaliação independente da política pública. Que órgãos de pesquisa ou uma agência independente com mandato tenha acesso aos dados e possa avaliar a qualidade, o que funcionou, se os recursos dariam mais resultados em outras áreas, e disponibilizar essas informações para a sociedade, que vai escolher os programas.
Valor: Esse conjunto de incentivos cabe no Orçamento atual?
Lisboa: Não só ultrapassa o Orçamento, como se traduz no Brasil caro. É caro, porque custos de produção são muito elevados, os custos de observância das regras, de todos esses subsídios cruzados, tudo isso afeta a produtividade da economia. Como falta luz do sol, é tudo escondido, quem recebe o benefício luta para preservá-lo, mas a sociedade paga esse custo difuso. Então ninguém se mobiliza pela mudança porque não vê o custo consolidado. Cada um vê seu benefício, quer preservá-lo, mas não vê que a soma gera distorções. É um custo que condena a economia brasileira a crescer menos.
Valor: Quando o sr. fala de crédito direcionado está se referindo ao BNDES?
Lisboa: Não só, tem nos bancos privados também. O que impressiona é disseminação de benefícios. No que se refere à desigualdade, o Brasil até tem boas notícias. Dos anos 90 para cá, desenvolvemos políticas sociais, ampliou-se o acesso à educação. O Bolsa Família é um bom exemplo de política pública bem-sucedida. A sociedade resolveu proteger famílias de baixa renda com crianças em idade escolar, os recursos estão no Orçamento. É das políticas públicas mais baratas e mais transparentes.
Valor: O sr. tem argumentado que reformas institucionais só acontecem depois de período de crise aguda. Já estamos nesse cenário?
Lisboa: Essa agenda começa com a grave crise dos anos 80, e prossegue ao longo da década de 90 e começo dos anos 2000. É agenda difícil, há visões antagônicas sobre esse processo. Não foi fácil à época, é só lembrar das privatizações. E ela prossegue até 2006, mais ou menos. O que se observa depois, sobretudo após a crise, é a retomada do velho projeto. Tivemos 15 anos de agenda mais liberal, de reformas, de regras, de maior transparência, inclusive com mudança na política social importante. Mas há retrocesso depois de 2007.
Valor: Houve um rompimento em sua agenda de microrreformas? O que aconteceu?
Lisboa: É preciso diferenciar dois tipos de intervenção microeconômica. A primeira é que se procura gerar ganhos de eficiência e produtividade, como o crédito consignado, a Lei de Falências. Regras adicionais que permitam que os custos de produção sejam reduzidos e que ampliam a produtividade da economia. Outra agenda de intervenção microeconômica é a agenda do subsídio cruzado. Fazer com que alguém pague pela ineficiência de outro. Então coloco conteúdo nacional e forço quem compra dessa indústria a pagar mais caro. Essa é uma agenda de transferência de recursos, tira de um para dar para outro, não aumenta produtividade. É o caso do setor elétrico. Não houve aumento de produtividade, o custo de energia caiu para alguns, outros perderam, mas a sociedade como um todo fica pior, porque aumenta a distorção. É o velho exemplo da meia-entrada. Quando digo que alguns grupos vão pagar entrada pela metade, forço quem paga entrada cheia a despender mais, porque ele financia a meia-entrada. Não é apenas tirar de um e dar para outro, o efeito indireto é que menos gente frequenta o cinema porque a entrada cheia fica mais cara.
“Antes [no período Lula], a gente crescia tão bem quanto os demais emergentes. Hoje, andamos piores que eles”
Valor: Em alguns ocasiões, o sr. disse que o crescimento econômico requeria expansão da malha logística e acesso à energia, dois pontos em que o governo Dilma está tentando avançar. Não é uma questão de entendimento do problema, de conteúdo, é de forma mesmo?
Lisboa: O Brasil, de fato, está perdendo o bonde da infraestrutura há 20 anos. Confundem-se visões ideológicas com grupos de interesse, mas há também um outro problema, que é a governança. Acho que a impressão que se tem olhando de fora é que há uma preocupação legítima e relevante com o investimento em infraestrutura, há uma tentativa de enfrentar o desafio, mas acho que o país ganharia muito se avançasse na agenda das regras, da clareza dos procedimentos.
Valor: As recentes concessões mostram que o governo têm avançado?
Lisboa: Eu preferia mais clareza. Quais são os subsídios envolvidos, o apoio das agências públicas. As visões de mundo são legítimas, mais e menos intervencionistas. O que é preciso é transparência no que está sendo feito.
Valor: No começo o sr. disse que esse cenário de deterioração macro aumenta a fragilidade em relação a choques externos. O rebaixamento da nota do Brasil seria um choque externo possível para este ano?
Lisboa: Esse é mais um exemplo de uma consequência da política dos últimos anos. O rebaixamento é consequência e não causa do processo. Não sei se ele é inevitável. Há uma deterioração fiscal no Brasil e esse é um aspecto relevante da avaliação do risco-país. Ela pode ser revertida e tomara que seja.
Valor: Esse retrocesso que o sr. identifica ocorre a partir do segundo governo Lula?
Lisboa: Acho que ele veio progressivamente, a partir do fim do primeiro governo Lula e começo do segundo mandato, e certamente se aprofunda a partir da crise externa, ganhando uma dimensão bem mais significativa. Mas o governo foi acusado de ter feito uma escolha por um modelo de consumo e essa crítica não me parece correta. O governo deu muitos estímulos ao consumo, mas também desenvolveu proteções, deu estímulos ao investimento e à produção. O governo cumpriu essa agenda de uma forma bastante ampla. O volume de recursos públicos direcionados ao setor produtivo foi bastante significativo em todo esse período, basta olhar o crescimento, por exemplo, dos recursos do BNDES. O que houve, no entanto, é a frustração com o resultado.
Valor: E por que não veio?
Lisboa: Porque esses estímulos parecem ter levado apenas a substituição do financiamento privado pelo financiamento público. O crédito subsidiado afeta o custo médio do investimento, não o marginal. Então, não é surpreendente que tenha pouco impacto sobre o investimento. Estamos aumentando nossa dívida, aumentando nosso compromisso futuro para gastos correntes, que são rígidos e que depois é mais difícil de retirar.
Valor: Isso significa um ciclo de crescimento baixo por mais tempo?
Lisboa: A boa notícia é que não passamos pela grave crise que passamos no passado. Agora, é uma economia medíocre, que cresce pouco, com gargalos em diversos setores, onde é caro produzir, onde há muita insegurança e incerteza sobre as regras do jogo, o investimento fica difícil, então a energia e a infraestrutura ficam caras, bens de serviços ficam caros, a tecnologia avança lentamente e a produtividade anda de lado. Uma economia de baixo crescimento.
Valor: Tem alguém no cenário político mais atento a essa agenda? O sr. tem conversado com alguém?
Lisboa: Não. Estou aqui na escola. Não converso com ninguém.
Valor: Qual foi a principal lição tirada da passagem pelo governo?
Lisboa: Um colega de vocês me dizia que, com tanta coisa importante, eu só ficava cuidando da faxina. O que acho é que quando se entra nos grandes debates, nada acontece. As grandes reformas polarizam a sociedade e não se consegue avançar. Isso não deveria impedir que uma agenda mais consensual, de melhorias institucionais, possa avançar.
Valor: Qual seria a próxima reforma microeconômica?
Lisboa: A agenda de acertar a governança dos investimentos em infraestrutura. O papel das agências regulatórias e como é que se debatem as decisões do Executivo ou das agências.