Há um aparente enigma na atual conjuntura da economia brasileira. Enquanto a produção industrial se contrai (-2,7% em 2012, segundo Pesquisa Industrial Mensal do IBGE), o comércio varejista se expande em ritmo acelerado (8,4% no acumulado em 2012, segundo Pesquisa Mensal do Comércio do IBGE).
Existem pelo menos quatro fatores por trás deste hiato entre produção e comércio: 1) um processo gradual de redução de estoques na indústria; 2) uma elevação de importados, em especial de bens não duráveis; 3) uma redução da demanda internacional por produtos manufaturados brasileiros; e 4) uma queda brusca no investimento. Algumas evidências preliminares apontam nessa direção.
Em relação à hipótese de estoques, dados da sondagem da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostram que o volume tem se reduzido no período em discussão. Com efeito, seis entre 14 setores industriais pesquisados afirmavam estar superestocados em dezembro de 2011, número que foi reduzido a apenas um no mesmo período de 2012.
A produção de bens de capital teve contração de 11,8% no acumulado de 2012, segundo o IBGE. Isso é relevante
Uma evidência mais informal pode ser obtida quando comparamos os dados de produção industrial do IBGE com os dados de faturamento real da CNI. Nos últimos sete trimestres, desde o início de 2011, o faturamento real da indústria de transformação aumentou 8,3%, enquanto a produção industrial caiu 4,9%. Essa diferença de 13 pontos percentuais sugere, ainda que não em sua totalidade, uma redução continuada nos estoques: a indústria contraiu a produção, mas seguiu aumentando as vendas, o que só é possível quando o volume de estoques está caindo.
É improvável, no entanto, que todo o descompasso entre produção industrial e comércio se deva apenas a um processo de desova de estoques. Por dois motivos. Primeiro, porque toda redução de estoques ocorre sempre de forma gradual, isto é, empresas não interrompem sua produção com o intuito de eliminar estoques. Segundo, pois a diferença presente no descompasso é muito expressiva para que haja apenas uma única causa. Essa percepção abre espaço para os outros fatores levantados.
O comércio varejista pode muito bem estar vendendo produtos importados. Em vez de se vender o que é produzido no Brasil, vende-se aquilo que vem do exterior. O problema dessa hipótese, contudo, é que o dado de quantum importado se reduziu 2,3% no acumulado de 2012 (dados da Funcex). Se houvesse mesmo vazamento de demanda para o exterior, não deveríamos observar um aumento do quantum importado?
Não necessariamente. Abertos os dados de importação, percebe-se a existência de cinco categorias: bens intermediários, combustíveis e lubrificantes, bens de capital, bens duráveis e bens não duráveis. Essas cinco categorias tiveram a seguinte variação percentual do quantum importado em 2012: 6,4% para os não duráveis, -18,2% para os duráveis, 0,2% para os bens de capital, -4,8% para combustíveis e lubrificantes e -1,3% para os bens intermediários. Tem destaque o desempenho “fora da curva” das importações de bens não duráveis, que cresce muito rapidamente enquanto os demais componentes decaem. Será que a elevação dessas importações específicas tem impacto no resultado aferido pela Pesquisa Mensal do Comércio?
Ao contrário da Pesquisa Industrial Mensal, que é feita por produto, a PMC a é feita por estabelecimento comercial. Portanto, há que se recorrer a uma aproximação (grosseira) para verificar a participação dos bens não duráveis em sua composição. Por exemplo, supermercados são estabelecimentos tipicamente vendedores de bens não duráveis, embora existam diversos bens duráveis à venda nessas instituições. Na análise, serão classificados como instituição de não duráveis. Embora não exista aqui nenhuma pretensão de precisão, apenas de ordem de grandeza, os resultados mostram que o setor de bens não duráveis tem peso significativo na composição da PMC, contribuindo com algo em torno de 35% do índice. Assim, na elevação dessas importações reside mais uma chave para a abertura do enigma.
Prosseguindo com a investigação, passamos ao terceiro fator explicativo do gap comércio-indústria, qual seja, a queda da demanda internacional pelos produtos brasileiros, expressa na contração de 0,3% do quantum exportado pelo país em 2012 (segundo dados da Funcex). Nos casos específicos de bens manufaturados e semimanufaturados, a contração é ainda mais aguda, com redução do quantum exportado de 1,3% e 1,6%, respectivamente. De fato, esse é um fator explicativo porque a queda da demanda internacional por produtos domésticos puxa para baixo a produção industrial e amplia o hiato entre produção e comércio varejista.
Por fim, a queda do investimento também constitui fator essencial na resolução do mistério. Expresso em números, o investimento vem decaindo em termos absolutos desde o segundo trimestre de 2011, recuando de 19,4% do Produto Interno Bruto (PIB) em seu pico mais recente para pouco mais de 18% do PIB no terceiro trimestre de 2012. Em particular, a produção de bens de capital teve contração de 11,8% no acumulado de 2012, segundo dados do IBGE. Trata-se de um número muito significativo. Como esse tipo de bem não é vendido pelo comércio, sua queda, ao mesmo tempo em que derruba a produção industrial, nem sequer se faz sentir no dado varejista.
À luz dessas evidências, percebe-se que o enigma da economia brasileira é, de fato, apenas aparente. A queda dos estoques, o aumento das importações de alguns produtos, a queda da demanda externa e a contração do investimento parecem explicar a discrepância entre varejo e produção industrial. Como popularmente se diz: “Tudo que um dia pode ser verdade, passa primeiro por ser um enigma”.
Ricardo de Menezes Barboza é economista do BNDES e membro do grupo de conjuntura econômica do IE/Coppead-UFRJ. Mestre em Economia pelo IE-UFRJ. Este artigo não reflete necessariamente a posição do BNDES.