Redação (13/10/2008)- Eram 7h da manhã, na segunda-feira dia 6, quando Luiz Fernando Furlan saiu apressado de casa e foi ao heliponto de Alphaville, na Grande São Paulo. De lá, num helicóptero do Bradesco, voou para os escritórios do banco, na avenida Paulista, e se reuniu com 100 gerentes da área corporativa para tratar do lançamento de um fundo voltado para empresas sustentáveis – naquele momento, Furlan ainda era o principal executivo do Banco do Planeta, uma iniciativa verde do Bradesco. O ex-ministro do Desenvolvimento fez sua exposição, mas não parava de olhar no relógio. Naquela mesma manhã, Furlan era aguardado com ansiedade nos escritórios da Sadia, na Vila Anastácio, em São Paulo, por todos os conselheiros da empresa – e também pelo novo presidente da KPMG Auditores, Pedro Melo. Em pauta, a investigação de um surpreendente prejuízo de R$ 760 milhões, causado por complexas operações financeiras no mercado futuro de dólar.
Daquela reunião, tensa, Furlan entrou como convidado e saiu como novo presidente da Sadia – depois de ocupar o cargo entre 1993 e 2002, ele substituirá seu primo Walter Fontana. “Aceitei porque este é um momento de emergência”, disse Furlan à DINHEIRO, horas depois de reassumir o comando da maior empresa brasileira de alimentos, com 60 mil funcionários e faturamento previsto para este ano de R$ 12 bilhões (leia sua entrevista abaixo).
DINHEIRO – Como foi decidida sua volta?
LUIZ FERNANDO FURLAN – Na semana passada, os acionistas se reuniram e me procuraram. Não foi bem um convite, mas sim uma convocação, como naquela cena do Poderoso Chefão. Diziam que era uma proposta que eu não podia recusar. Esse é um momento de emergência e eles imaginaram que eu era a pessoa em melhores condições para passar confiança não só ao mercado, mas também internamente.
DINHEIRO – O que aconteceu foi caso de polícia?
FURLAN – Embora nossa empresa seja da área industrial, o problema que ocorreu é financeiro, que não tem relação direta com o nosso negócio. Apesar disso, do ponto de vista societário, isso tem que ser resolvido até as últimas conseqüências.
DINHEIRO – Inclusive penais?
FURLAN – A KPMG, que foi contratada para fazer uma auditoria, vai apurar tudo. Estamos tratando o caso com muita seriedade e vamos tomar todas as medidas cabíveis. Eles já fizeram um relatório parcial, apontando que não se tratava de um problema nosso de governança corporativa.
DINHEIRO – Como assim?
FURLAN – O que houve foi uma falha de reportar ao conselho de administração que a área financeira não estava agindo em conformidade com as nossas práticas de governança. Isso foi detectado três vezes pela gerência de controle de riscos.
DINHEIRO – A informação não subiu ao conselho?
FURLAN – Não, porque o diretor financeiro obstruiu o relatório do gerente de riscos.
DINHEIRO – O gerente de riscos não tinha um canal direto com o conselho? Ele tinha de se reportar ao diretor Adriano Ferreira, da área financeira?
FURLAN – Essa foi uma pergunta que eu fiz. Aparentemente, o diretor tinha poder sobre o gerente de riscos de gerar esse tipo de constrangimento.
DINHEIRO – Então vocês conseguiram detectar que a exposição da Sadia aos mercados futuros era bem superior ao limite prudente?
FURLAN – Sim, e com muita antecedência. Se o sistema de controle de riscos não tivesse sido obstruído, o problema não teria existido e nem eu estaria sentado aqui nesta cadeira.
DINHEIRO – Por que a operação vinha sendo feita?
FURLAN – A valorização do real apertou muito a rentabilidade das exportações. O recomendável era fazer essa operação de hedge para seis meses de exportações, o que significa US$ 1,7 bilhão, para exportações totais de US$ 3,5 bilhões. Isso servia para melhorar o resultado, em períodos de câmbio cadente. O problema é que o diretor fez operações de alta complexidade, que poderiam gerar um ganho financeiro, mas que seriam desastrosas em caso de dar errado. Eram operações conhecidas como dois por um, que dobravam o ganho da instituição financeira.
DINHEIRO – Estancar logo a perda foi a melhor decisão que poderia ser tomada?
FURLAN – Eu não quero nem pensar no que aconteceria se a Sadia não tivesse liquidado as operações. Se algum outro empresário ainda tiver posição em aberto, deve estar perdendo o sono.
DINHEIRO – Na auditoria, o diretor Adriano Ferreira assumiu a sua responsabilidade?
FURLAN – Sim.
DINHEIRO – Isso não encerra a auditoria?
FURLAN – Não. A auditoria está verificando as responsabilidades colaterais e também se havia algum tipo de relacionamento entre os bancos e o nosso ex-diretor. Quem errou, será punido.
DINHEIRO – O ex-diretor tinha alguma remuneração adicional vinculada a resultados, que o teria levado a especular de maneira tão agressiva?
FURLAN – Não. Na Sadia, existe uma regra geral na empresa, que se aplica a todos os dirigentes. Eu me lembro que, algum tempo atrás, o banco francês Société Générale também amanheceu com uma grande surpresa por um erro financeiro.
DINHEIRO – Como o sr. pretende recuperar a companhia depois desse baque?
FURLAN – O futuro é a parte boa da história. A Sadia tem ótimas condições operacionais e seis fábricas novas que estarão operando até março do ano que vem. Eu penso que uma empresa de 64 anos, que nunca fechou um balanço no vermelho, já tendo passado por várias outras turbulências, merece muito crédito. É possível que esse seja o primeiro ano de prejuízo da empresa, mas ela tem lucros acumulados que nos permitem zerar a perda. No ano que vem, será business as usual.
“O MUNDO NÃO PAROU E A DEMANDA POR NOSSOS PRODUTOS SEGUIRÁ ALTA NA CHINA E EM MUITOS OUTROS MERCADOS MUNDIAIS”
DINHEIRO – Qual será o impacto positivo das novas fábricas?
FURLAN – Quando elas estiverem operando a pleno, vão gerar um faturamento adicional de R$ 4 bilhões, o que é significativo para uma empresa que deve fechar 2008 com receitas de R$ 12 bilhões.
DINHEIRO – Com o sr. enxerga as tendências de consumo interno e externo, com a possibilidade de uma recessão global?
FURLAN – Essa crise financeira vai gerar uma acomodação. Mas o crescimento dessa nova classe média, na China, na Índia, no Brasil e em outros países emergentes, não vai ter um refluxo importante. Na primeira vez em que fui à China, em 1982, o único chinês gordo que eu vi já tinha morrido. Era a tumba do Mao Tsé-tung. Hoje, os chineses estão mais fortes e mais altos. A demanda por proteína continuará acentuada e o Brasil é o país com melhores condições no mundo para suprir esse mercado. O mundo não vai parar.
Depois de uma passagem vitoriosa pelo governo, onde liderou um salto comercial que fez as exportações passarem de US$ 60 bilhões para US$ 132 bilhões em quatro anos, Furlan voltou ao mundo corporativo tomando providências imediatas. A primeira delas foi dar sinal verde aos auditores da KPMG para apurar todas as responsabilidades pelo prejuízo cambial de R$ 760 milhões, que fará a Sadia fechar, em 2008, seu único balanço no vermelho em 64 anos de vida. A primeira vítima foi o ex-diretor financeiro Adriano Ferreira, que assumiu, por escrito, responsabilidade pelas operações no mercado futuro, bem acima dos limites permitidos pelo conselho da companhia. “Mas nós também queremos saber se houve participação de gerentes, de outros diretores e até mesmo dos bancos no problema”, garante Furlan. “Ninguém será poupado.”
A segunda providência foi cancelar o processo de mudança da área administrativa da Sadia para um novo complexo de escritórios na Marginal Pinheiros, construído pela empresa W.Torre. Segundo Furlan, a medida economizará R$ 20 milhões e transmitirá uma mensagem simbólica. É o que ele chama de body language, indicando que as atitudes dos gestores têm de ser coerentes com a gravidade do momento.
Furlan garante que seu retorno também marcará uma volta da Sadia às suas origens industriais, passando longe da especulação financeira. “Nós não temos nenhum problema operacional, muito pelo contrário”, diz ele. Em ampliações, a empresa está investindo R$ 1,6 bilhão, o que fará o faturamento saltar para R$ 16 bilhões em 2010 – a nova unidade de Lucas do Rio Verde, em Goiás, será a maior fábrica de alimentos do País, com 167 mil metros quadrados de área produtiva. O problema da Sadia, na verdade, foi meramente financeiro. Para compensar os efeitos negativos da valorização do real, a equipe do diretor Adriano Ferreira antecipou a venda de mais de um ano em exportações, numa cotação a R$ 1,80. Mas, como a crise externa fez com que o dólar disparasse, a Sadia teve de honrar suas posições nos mercados futuros. Segundo fontes de mercado, os quatro principais bancos que fizeram essas operações com a Sadia foram o Deutsche Bank, o Barclays, a Goldman Sachs e o HSBC – todos também serão procurados pelos auditores da KPMG. “Por trás desses prejuízos, sempre tem um banqueiro perverso vendendo operações quase letais, mas aparentemente sem risco”, disse à DINHEIRO o financista Paulo Guedes, criador do Pactual.
Um dos grandes trunfos da Sadia foi ter limpado, de cara, seu balanço. Outros exportadores, que também operaram com opções no mercado de câmbio, preferiram adiar a contabilização dos prejuízos, que vêm sendo estimados pelo mercado em, pelo menos, R$ 35 bilhões. Ainda assim, a Sadia terá de reconstruir suas pontes com o mercado financeiro. Na semana passada, a agência de risco Standard & Poor’s rebaixou a nota da empresa de BB+ para BB. Segundo a analista Milena Zaniboni, da S&P, a Sadia teve de tomar linhas de crédito de curto prazo para cobrir perdas financeiras, o que deteriorou o perfil da sua dívida. Na área de análise do Unibanco, a analista Juliana Rozenbaum também divulgou um relatório, apontando que a agressividade financeira “não é uma novidade” para a companhia. E o fato é que a empresa foi penalizada pelo mercado – seu valor de mercado caiu de R$ 8 bilhões para cerca de R$ 4,5 bilhões, depois do anúncio das perdas.
Hoje, a Sadia é a maior exportadora de alimentos do País, mas vale menos do que a Perdigão. Portanto, teoricamente, a empresa poderia até ser alvo de uma oferta hostil da maior concorrente – o inverso do que ocorreu em 2007, quando Walter Fontana tentou comprar a Perdigão. Naquele ano, a Sadia se viu envolvida em um outro escândalo financeiro. Seu ex-diretor financeiro Luiz Gonzaga Murat Júnior e um executivo do ABN-Amro, Alexandre Ponzio de Azevedo, foram investigados pela Securities Exchange Comission, a CVM norte-americana, por uso de informação privilegiada na operação montada para adquirir a Perdigão. Murat caiu e deu lugar ao diretor Adriano Ferreira, que montou a especulação com derivativos. Na semana passada, Adriano Ferreira passou vários dias numa maternidade em São Paulo, acompanhando as gêmeas recém-nascidas Fernanda e Manuela. Procurado pela DINHEIRO, ele evitou falar sobre o caso Sadia, por orientação de seus advogados.
Na vida pessoal, o ex-ministro Furlan também terá de fazer uma série de ajustes. Depois de 29 anos na Sadia, ele não planejava voltar à empresa. Membro de conselhos internacionais como o da Telefonica, na Espanha, e o da Panasonic, no Japão, ele pretendia se dedicar à atividade de consultoria, com foco especial em áreas como saúde, educação e meio ambiente. Mas essas experiências, como a do Banco do Planeta, no Bradesco, foram úteis e serviram para arejá-lo. “O Brasil não só é o mais competitivo exportador de proteínas do mundo, como também é aquele que produz com o melhor coeficiente ambiental”, diz o ex-ministro. “É hora de usar isso como uma vantagem competitiva.” Aos 62 anos, Furlan está animado e garante que o prejuízo de R$ 760 milhões, em breve, será página virada na história da empresa.