Redação (21/06/06) – Mais de 2.200 acordos bilaterais de proteção de investimentos no exterior já foram assinados por cerca de 180 países. O Brasil, porém, sempre se recusou a ratificar este tipo de acordo com medo das ações que poderiam ser adotadas caso fôssemos obrigados a indenizar empresas estrangeiras pelas nossas constantes mudanças das regras do jogo. O caso da nacionalização da Petrobrás na Bolívia prova que é hora de rever essa estratégia, já que estamos virando “gringos” nos outros países e precisamos, agora, pensar também nos interesses das nossas empresas além das fronteiras nacionais.
Hoje se fala muito da crescente internacionalização de empresas nacionais, como Petrobrás, Vale do Rio Doce, Gerdau, Natura, Embraer e Embraco. O que pouca gente sabe é que há milhares de casos de pequenos empreendedores brasileiros que vêm enfrentando toda sorte de adversidades para expandir as suas atividades em regiões remotas da América do Sul.
Um dos exemplos mais notórios está no agronegócio. Há quatro décadas milhões de agricultores deixam sua terra natal no sul do País em busca de melhores oportunidades no centro do continente. Muitos destes empreendedores atravessaram as fronteiras brasileiras, mudando o panorama da agropecuária nos países vizinhos, com destaque para Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia. Um dos exemplos clássicos é o dos rizicultores brasileiros que migraram para a Argentina e o Uruguai buscando aproveitar as melhores condições de produção desses países.
Graças à combinação de novas variedades de soja e algodão, raças melhoradas de gado zebu indiano e gramíneas africanas extraordinárias como a Brachiaria, o nosso Centro-Oeste conseguiu desenvolver-se na mesma velocidade da China. No contexto deste movimento silencioso, não demorou muito para que os produtores mais destemidos descobrissem o enorme potencial agrícola do Chaco paraguaio, para onde se dirigiram na esteira das políticas de colonização das décadas de 1970 e 80. No final da década de 90 já havia 460 mil brasileiros no Paraguai, ou 6% da população do país. Os “brasiguaios” possuem 1,2 milhão de hectares nesse país. Em alguns pontos da fronteira os brasileiros constituem 90% da população local.
No início dos anos 90, atraídos por terras baratas e férteis e fortemente estimulados por incentivos do governo boliviano, milhares de sojicultores brasileiros aportaram no Departamento de Santa Cruz de la Sierra. Pouco a pouco, esse Departamento se transformou na principal região agropecuária da Bolívia (70% da produção agrícola do país!) e numa das mais promissoras fronteiras da produção de soja do mundo. Estimativas indicam a presença de mais de 30 mil agricultores brasileiros na Bolívia. Estima-se que 32% dos sojicultores do país sejam brasileiros, cifra superior aos bolivianos (27%) e às colônias de cristãos menonitas (28%); 35% da soja exportada pela Bolívia é da responsabilidade de brasileiros. A soja é o segundo produto de exportação da Bolívia, logo atrás do gás natural, e representa 6,5% do PIB do país.
Nos últimos dez anos, a área da oleaginosa duplicou na Bolívia e aumentou 260% no Paraguai. Essa ampliação está diretamente relacionada com os investimentos e o know-how brasileiros. A expansão da atividade agropecuária brasileira nos países vizinhos é um caso de sucesso e tensões, decorrentes de movimentos migratórios estimulados por incentivos para a ocupação de áreas de fronteira, de um lado, e de mudanças ciclotímicas no cenário político regional, do outro.
A posse de Evo Morales, em janeiro, levou à estatização do petróleo e do gás, afetando os investimentos da Petrobrás. O próximo alvo de Morales podem ser os sojicultores brasileiros, bem mais dispersos em termos de renda e população. No início de junho, o governo boliviano anunciou a sua nova “revolução agrária”, que será feita por meio da “regularização dos títulos de terra” pelo Estado, sob a alegação do não-cumprimento da sua função social e da expulsão de todos os proprietários estrangeiros da zona de 50 quilômetros de fronteira (há pelo menos 200 propriedades de brasileiros nessa situação). Há uma percepção no governo brasileiro de que será muito difícil os brasileiros escaparem da desapropriação na Bolívia, em razão da fragilidade documental, ambiental e trabalhista.
Não é a primeira vez que a Bolívia nacionaliza o petróleo e promove reformas agrárias. Medidas puramente distributivas dessa natureza têm grande efeito populista, porém raramente geram sistemas mais eficientes. A ditadura do proletariado no comunismo não teria sucumbido se fosse um regime econômico mais eficiente. O projeto de Morales prevê a nacionalização de 11 milhões a 14 milhões de hectares, o que representa 11% das terras do país, que serão distribuídos a camponeses sem terra, a comunidades indígenas e aos bolivianos sem terra que estejam dispostos a trabalhá-la. A grande presença de brasileiros ajuda a fomentar um clima de confronto em que os produtores são apontados como “imperialistas”, “expansionistas” e “invasores”, a exemplo do que já vem ocorrendo com os “brasiguaios” no Paraguai.
Em suma, terras férteis e baratas, empreendedorismo, tecnologia avançada e o forte incentivo dos governos da região levaram milhares de agricultores brasileiros a construir uma vida inteira além das nossas fronteiras nacionais. Há muitos anos, os governos da região se reúnem para fazer discursos eufóricos recheados de promessas de amizade eterna, prosperidade e maior integração regional. É hora de cumprir as sucessivas promessas que foram feitas, garantindo os investimentos, os direitos de propriedade e a estabilidade das regras do jogo. Milhares de cidadãos que embarcaram nessa onda poderão ter o seu futuro comprometido pela falta de seriedade dos governantes desta nossa América Latina sempre tão sofrida e volátil. Marcos Sawaya Jank, professor da FEA-USP, presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais.