Redação (11/06/07) – Preocupação crescente desde o fim de 2006, quando a febre dos biocombustíveis começou a contagiar a demanda global por produtos agrícolas e a alavancar as cotações internacionais de commodities como milho, soja e trigo, a tendência de elevação dos preços dos alimentos no mundo tem limite.
Mesmo que as previsões mais pessimistas indiquem que, para chegar ao teto, as cotações ainda subirão por pelo menos mais três anos, há sinais de que até lá a escalada poderá ser atenuada por recomposições de estoques. E, nas próximas décadas, possíveis disparadas poderão ser contidas ou amenizadas por expansões de áreas plantadas em países como o Brasil e aumentos de produtividade proporcionados por uma "revolução verde" hoje liderada pelos organismos geneticamente modificados (OGMs) – os transgênicos.
Lembrada mesmo por especialistas que acreditam que os biocombustíveis de fato elevarão definitivamente as médias históricas dos preços de commodities destinadas a alimentos – que já vinham em alta graças ao maior consumo em países emergentes como China e Índia -, a "revolução verde" nasceu na década de 50.
E os ganhos de produtividade gerados a partir do maior uso de insumos nas lavouras atropelaram os temores dos ambientalistas e evitaram preços excessivamente elevados em pelo menos dois outros momentos em que as previsões sobre o futuro alimentar global foram tão ou mais sombrias do que agora: logo depois da Segunda Guerra e na década de 70, a partir de diagnósticos da 1ª Conferência Mundial de Segurança Alimentar da FAO, braço da ONU para agricultura e alimentação.
A mesma FAO prevê que, em grande parte graças à "agroinflação" resultante da panacéia dos biocombustíveis, o valor das importações globais de alimentos baterá novo recorde histórico neste 2007. Em extenso relatório divulgado na quinta-feira, o órgão estima que essas importações vão superar US$ 400 bilhões, 5% mais que em 2006, que ostenta o atual recorde. O relatório vai além: no caso dos países emergentes, o aumento médio do valor das importações será de 9%.
As previsões refletem saltos expressivos das cotações internacionais das commodities nos últimos 12 meses. Segundo o Valor Data, na bolsa de Chicago, os preços médios mensais do milho (contratos futuros de segunda posição de entrega, normalmente os de maior liquidez) subiram 46,52% no período de doze meses até maio. A soja em grão, pelo mesmo critério, registrou alta de 29,93% – o óleo de soja aumentou 35,47% e o farelo, 19,05% -, enquanto o trigo ficou 23,54% mais caro. Em Nova York, registraram valorizações no intervalo o cacau (25%), o suco de laranja (4,77%) e o café (4,47%).
Especialmente milho e soja agradecem aos biocombustíveis pela alta alcançada, acelerada a partir de outubro de 2006. Vale lembrar, contudo, que as cotações já vinham sentindo há alguns anos os efeitos da maior demanda gerada pelos crescimentos econômicos dos emergentes China e Índia, com reflexos marcantes em fretes e insumos, com destaque para o encarecimento dos fertilizantes. Nos últimos 62 meses (seis anos) até maio último, os ganhos do milho em Chicago atingiram 84,12%, enquanto os da soja chegaram a 77,66%, segundo o Valor Data.
"Como a demanda cresceu muito rápido nos últimos anos, a relação entre os estoques e o consumo global de algumas commodities agrícolas ficou relativamente modesta. As carnes também passaram por isso. Mas esses estoques serão recompostos", acredita o economista Fabio Silveira, da RC Consultores, que acompanha de perto esse mercado. A própria FAO, no relatório que divulgou na quinta-feira, aponta crescimento de estoques globais de milho (principal matéria-primas para a fabricação de etanol nos EUA) em 2008, ainda que para o arroz a projeção indique uma nova retração.
Silveira pode ser incluído em uma ala de "agroeconomistas" que acredita que as forças do mercado vão se equilibrar com o passar do tempo, que a curva da oferta encontrará a demanda e que as cotações das commodities tenderão a voltar a suas médias históricas, com seus tradicionais soluços cíclicos e talvez com mudança de patamar em um caso ou outro – mas nada dramático. Somente nesta década, lembra, soja e açúcar foram às alturas e voltaram, enquanto o café beirou o fundo do poço e emergiu.
Um caso que ilustra bem o raciocínio de Silveira é o da soja. Quando o apetite chinês levou o grão a superar US$ 10 por bushel em Chicago, em 2004, muitos produtores (inclusive no Brasil) acreditavam a média histórica de US$ 6 seria finalmente superada, já que as projeções para a economia do gigante asiático eram de avanço forte e duradouro. Os chineses seguiram causando inveja a quase todos os outros países do mundo, mas mesmo assim a soja caiu abaixo de US$ 6 antes de pegar carona com o milho e voltar a subir. Alguns sojicultores brasileiros têm dívidas até hoje por acreditarem que margens de lucro de 80% ou mais seriam eternas como os diamantes.
A busca por escala e produtividade, afirma Silveira, é inerente à atividade capitalista e os preços de equilíbrio normalmente são referenciados pelo produtor mais eficiente, o que coíbe disparadas sem fim e fortalecem a característica cíclica das commodities. E como as commodities agrícolas são renováveis e expansíveis, diz, esta lógica deverá prevalecer. "Aconteceria o contrário se não houvesse terras disponíveis para plantio no mundo. Mas há. Brasil e Argentina podem crescer muito nos próximos anos, e a partir de um determinado momento, talvez 2020, teremos a África como supridor importante de alimentos. Não é à toa que os chineses estão investindo na agricultura africana". Destaca-se, nessa conquista chinesa da África, parceria com empresas de pesquisa como a estatal brasileira Embrapa.
Também faz parte dessa equação a resistência dos consumidores e seu poder de substituir produtos caros por alternativas mais baratas. Foi assim no passado no Brasil, quando as massas passaram a interferir nos preços do prato de arroz e feijão, e mais recentemente com o suco de laranja no mercado internacional. Exportado principalmente pelo Brasil, a cotação do produto na bolsa de Nova York saiu de 58,43 centavos de dólar por libra-peso (abaixo da média histórica), em maio de 2004, e chegou a US$ 1,9960 em dezembro de 2006, por conta de problemas de oferta na Flórida. Nesse patamar, o consumo diminuiu em diversos mercados – EUA e China entre eles – e as cotações já caíram quase 20%.
Fernando Homem de Melo, professor titular da FEA/USP, acompanha os embates entre as forças do mercado agrícola há mais de 30 anos e corrobora a tese de equilíbrio no futuro. A questão, para ele, é saber quando esse futuro chegará e se até lá os efeitos das altas em curso serão suportáveis, principalmente pelos países e consumidores mais pobres, para quem os alimentos tem peso maior no orçamento. "O atual ciclo inflacionário não está consolidado. Sem dúvida há um limite, mas não sabemos qual" – até porque a "inflação dos biocombustíveis" continuará com estreitas ligações com o preço do petróleo por muito tempo.
Em recente estudo intitulado "How Biofuels Could Starve the Poor", os professores C. Ford Runge e Benjamin Senauer, da Universidade de Minnesota, calculam que, com o barril do petróleo em cerca de US$ 80 (hoje está abaixo de US$ 70), é possível pensar no bushel do milho acima de US$ 5 em Chicago (hoje está perto de US$ 4). Mas, se o barril por acaso recuar para US$ 30, US$ 2 pelo bushel do milho estará bom demais. O International Food Policy Research Instituto, em Washington, acredita no petróleo caro e projeta alta de 41% do milho até 2020, com ou sem "revolução verde" – ou "verde 2", já que ela terá de respeitar as rigorosas regras ambientais atuais, impensáveis na década de 50.
Nesse cenário de limite sem data para a "agroinflação", resta ao Brasil a enorme vantagem de ser fornecedor mundial de commodities como soja e, mais recentemente, milho, ainda que o país importe 80% do trigo que consome. Aliado a um câmbio que limita ganhos domésticos e a um grande mercado interno, esse fator tem ajudado a diluir os efeitos das disparadas internacionais. Mas não as elimina, o que reduz as margens das agroindústrias e preocupa sobremaneira o Banco Central. O índice de preços agrícolas no atacado da Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, aponta alta de 11% da cesta básica nos últimos 12 meses.
Marcio Nakane, coordenador da pesquisa do IPC da Fipe, acredita que, para o país, o pior já passou, e que o cenário "agroinflacionário" tende a ser tranqüilo até o fim deste ano. Mas alimentos industrializados ou semi-processados preocupam, principalmente os derivados do leite e do trigo. Os primeiros sofrem a influência de uma alta internacional que estimula as exportações brasileiras; já os derivados do trigo sobem pela queda do fornecimento da Argentina.