Se questionado, qualquer um de nós é capaz de lembrar que a soja, essa planta do Oriente que se tornou estrela da agricultura brasileira, além de rações animais, nos dá o óleo de cozinha, temperos como o “shoyu”, a margarina e o “tofu”. Uns poucos de nós sabem que ela é o “petróleo verde”, que fornece componentes para a fabricação de milhares de outros produtos, como cosméticos, medicamentos, adesivos, adubos, shampoo, esmalte, sabonete, espumas, fibras, velas, plásticos, lubrificantes, desinfetantes, inseticidas, têxteis e biodiesel. Talvez a tinta de impressão deste jornal que você lê tenha componentes da soja, que já substituem com vantagem derivados do petróleo.
Mas nada disso estava pronto na natureza. Produzir essa riqueza exigiu uma jornada dentro do tempo e da ciência, que teve início há mais de sete mil anos, na Ásia, quando a soja era ainda uma planta selvagem e sem uso como alimento até alcançar o apogeu nas Américas. De sua domesticação na China à fantástica trajetória de expansão nas lavouras dos Estados Unidos, Brasil e Argentina, seu cultivo recebeu gigantesco aporte de conhecimentos e tecnologias para que se adaptasse a uma enormidade de ambientes e usos, tornando-a um dos principais propulsores do desenvolvimento econômico e social e vetor de crescimento das nossas principais regiões agrícolas.
Na base dessa façanha está a capacidade de domesticar plantas selvagens, adquirida pelo homem nos últimos dez mil anos. Usando tentativa e erro, plantas com características desejáveis foram escolhidas, seus genes mesclados, as novas plantas selecionadas e moldadas às necessidades humanas. Isto permitiu a domesticação dos grãos, frutos e raízes que são a base da nossa alimentação. Com o extraordinário avanço do conhecimento em genética, estatística e fisiologia, os cientistas ampliaram a capacidade de criar plantas mais produtivas, capazes de brotar e produzir em menos tempo, mais resistentes a insetos, doenças, seca, calor e umidade, e com melhor qualidade nutricional.
No caso da soja, isso exigiu que se modulasse a expressão dos mais de 45 mil genes que controlam o seu desenvolvimento, melhorando sua capacidade de transformar CO2, água, luz solar e nutrientes em carboidratos, óleos, proteínas e inúmeros outros componentes essenciais à agroindústria moderna. De uma produção de grãos irrisória, no início do século XX, a soja chegou aos dias de hoje produzindo a média de 3 toneladas por hectare e recordes de produção superando 8 toneladas por hectare. No Brasil, o acervo de conhecimentos e tecnologias incorporados nesse cultivo permitiu que, de um quase nada nos anos 1960, se alcançasse 99 milhões de toneladas na safra corrente.
Sem dúvida, o avanço tecnológico mais fascinante da soja é a sua adaptação ao mundo tropical, processo liderado por cientistas da Embrapa e de universidades brasileiras. Até os anos 1960 seu cultivo estava confinado apenas ao Sul do Brasil, de clima temperado, com dias curtos e noites longas, iguais aos da sua região de origem, na Ásia. Hoje, com alterações genéticas e tratos culturais específicos, ela cresce saudável em qualquer lugar do país, até mesmo acima da linha do Equador. A soja moderna também se tornou muito eficiente na simbiose com bactérias que capturam o nitrogênio da atmosfera, o processam e o fornecem às suas raízes, outra inovação disseminada pela Embrapa. Assim, a agricultura brasileira economiza todo ano cerca de 5 bilhões de dólares, que seriam gastos se a soja precisasse receber nitrogênio via adubos químicos.
A biotecnologia moderna, fundamentada na biologia molecular, na biologia celular e na engenharia genética tem produzido profundas mudanças no desenvolvimento de novas variedades de soja. Plantas modificadas para resistência a herbicidas e insetos já ocupam mais de 90% da área cultivada no Brasil. Além disso, a nova tecnologia de edição de genomas, denominada CRISPR-Cas9, promete revolucionar a ciência da modificação genética, sem necessidade da transgenia, ou transferência de genes de um organismo a outro. Com essa técnica será em breve possível editar o genoma, como se edita um texto, removendo ou alterando partes do DNA da própria planta para modular características desejáveis.
Portanto, quando alguém se referir à agricultura de commodities, como a soja, como algo atrasado e de baixa tecnologia, reflita. Conforme nos mostra a história da soja, nada é mais avançado que a vida transformada pelo conhecimento para atender às necessidades da sociedade e da natureza. O grão dourado expressa sete mil anos de conhecimento humano e mobiliza um arsenal tecnológico que molda os setores agroalimentar e agroindustrial em todo o mundo. E o seu sucesso aguça a grande vocação do Brasil, de se tornar o maior país agrícola do mundo.
* Maurício Antônio Lopes é Presidente da Embrapa