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Mercado Externo

O vizinho em crise

A vida dos agricultores da Argentina está complicada. O país, um maiores produtores de grãos do mundo, é fornecedor de trigo do Brasil.

O vizinho em crise

Buenos Aires, capital da Argentina, é uma cidade linda, repleta de prédios históricos, praças e marinas. Mas essa, que já foi conhecida como a mais européia das capitais latino-americanas, hoje convive com problemas bem típicos do terceiro mundo.

Na última década, a economia do país mais parece uma montanha-russa, que hora sobe e hora desce. Por isso, é fácil encontrar gente protestando pelas ruas da cidade. O governo da presidenta Cristina Kirschiner está desagradando muita gente, como o economista Raul Ochoa, professor de uma das respeitadas universidades da Argentina.

“Os dados oficiais da Argentina estão distorcidos. Não são confiáveis. Com isso, fica difícil saber os índices verdadeiros da nossa economia, como por exemplo a taxa de inflação, de pobreza e o custo real da cesta básica”, disse Ochoa.

O doutor Ochoa também afirma que as distorções vão além dos dados oficiais. “Há muitos subsídios hoje na Argentina para manter baixos os preços de algumas tarifas, como o da energia elétrica. Aqui em Buenos Aires, por exemplo, pagamos três vezes menos pela energia do que os moradores de cidades como Córdoba e Santa Fé. A única explicação é que aqui vivem 14 dos 40 milhões de habitantes do país. Então, muitos votos estão concentrados aqui”, falou.

Mas os maiores problemas parecem estar mesmo no campo, onde agricultores, pecuaristas e produtores de leite, há mais de um ano, vivem às turras com o governo de Cristina Kirschiner. Para conversar com eles, a equipe de reportagem deixou a capital e seguiu para o interior da província de Buenos Aires, uma das principais regiões produtoras de grãos do país.

O grupo viajou 120 quilômetros até San Antônio de Areco, cidadezinha histórica, com pouco mais de 15 mil habitantes. A equipe foi conhecer seu Martin Vivanco, dono da fazenda de 150 hectares, que produz grãos e cria reprodutores da raça aberdeen angus. O seu Martin é um produtor bem típico da Argentina. Além da terra própria, ele arrenda mais 400 hectares para plantar grãos.

“Normalmente eu divido a área. Planto 20% de trigo, 20% de milho e 60% de soja. Mas, esse ano plantei muito pouco trigo e fiz milho só para o consumo dos animais. Vou plantar quase toda a área com soja”, contou seu Martin.

O seu Martin explicou que tomou a decisão por causa do clima e da política agrícola adotada pelo governo. O problema começou no ano passado, quando a Argentina enfrentou uma das piores secas de sua história. Muitos agricultores viram as produtividades despencarem. Outros simplesmente perderam tudo o que plantaram. Animais morreram por falta de pasto e de água. Só conseguiu manter o plantel quem tinha dinheiro pra comprar ração.

“A seca começou em abril de 2008 e durou até maio desse ano. Ano passado aqui choveu perto de 660 milímetros. Quando o normal é chover mais de 1,1 mil”, explicou o doutor Fernando Mousegne.

O doutor Fernando Mousegne é agrônomo do INTA, Instituto de Pesquisa Agropecuária da Argentina. Ele contou que algumas culturas, como o trigo, por exemplo, foram muito afetadas pela seca. “A produtividade caiu muito. A média da argentina é de 2,0 mil a três mil quilos de trigo por hectare. No ano passado, não chegou a dois mil. E em algumas áreas, foi de 700 a 800 quilos por hectare”, falou.

Não foi só a produtividade que caiu. A área plantada com trigo na Argentina sofreu uma redução de um terço. Passou de cinco milhões para pouco mais de 3,5 milhões de hectares. Além do clima, outro fator foi determinante pra essa queda: a política agrícola do governo, que no meio do ano passado, em pleno cenário da seca, decidiu aumentar os impostos sobre as exportações, as chamadas retenções, que têm alíquotas variáveis de acordo com o produto.

“No caso da soja, o governo fica com 35% do valor exportado, no milho 20%, e no trigo 23,5%”, declarou Carlos Garetto.

Carlos Garetto é presidente da Coninagro, confederação que reúne mais de 300 cooperativas argentinas. Ele explicou que, além das retenções, o governo encontrou uma maneira de controlar as exportações. Criou um órgão, a Onnca, responsável por emitir um documento, chamado Roe, sem o qual ninguém pode exportar. Os agricultores reclamam que o governo usa esse mecanismo para controlar os preços internos.

“O governo resolveu pressionar quando viu que os preços agrícolas cresciam no mercado internacional. Dificultando as exportações, eles evitam o aumento do preço dos produtos da cesta básica aqui no mercado interno”, completou Garetto.

A Argentina sempre produziu muito mais grãos, carne e leite do que consome. Sem poder exportar, os agricultores são obrigados a vender a produção dentro do país, fazendo com que a oferta aumente e os preços internos se mantenham baixos.

Durante boa parte do ano passado, os agricultores protestaram fechando estradas e fazendo manifestações na capital federal. Mas não adiantou. O governo manteve os impostos e restrições. As consequências dessa combinação de clima e política desfavoráveis podem ser traduzidas pelos números das últimas safras colhidas na Argentina.

Em 2007, a Argentina produziu 16 milhões de toneladas de trigo. No ano passado, a colheita foi de pouco mais de oito milhões. A safra de milho caiu de 22 para 12,6 milhões de toneladas. A soja sofreu uma queda menor, em torno de 30%, passando de 46 milhões de toneladas em 2007 para 32 milhões em 2008, porque, apesar dos problemas, a área plantada com soja vem aumentando.

Muitos agricultores que antes diversificavam a produção plantando trigo, milho, aveia e canola preferem fazer dois cultivos de soja por ano. A cultura deve ocupar na próxima safra 18 dos 30 milhões de hectares de terra destinados à agricultura na Argentina.

Não é difícil entender a razão. “Todas as culturas são mais caras do que a soja. A soja é mais rústica, precisa de menos insumos e tem menos riscos. Hoje, custa cerca de US$ 180 a US$ 200 produzir um hectare de soja. E rende perto de US$ 250 por hectare”, calculou seu Martin.

E há mais um motivo pra esse crescimento da soja. Apesar do imposto sobre a exportação ser de 35%, o consumo no mercado interno é muito pequeno. Então, quase não há barreiras para a exportação. Mas o avanço da cultura pelas terras do país já traz preocupação para os técnicos.

“Preocupa não somente pelo tamanho da área, mas porque está virando uma monocultura. Eliminando a rotação com as gramíneas, como o trigo e o milho, o que estamos fazendo é gerar cada vez mais problemas com doenças, pragas e ervas daninhas. Estamos criando resistência aos agrotóxicos”, esclareceu o doutor Fernando.

No ano passado, com a situação mais normal, a soja estaria sendo semeada nesse momento no plantio direto, sob a palhada de milho ou de trigo ou de qualquer outra cultura. Mas com a crise econômica, isso não está acontecendo. Muita gente deixou a terra parada, descoberta, esperando pelo próximo plantio de soja. Esse é o caso do agricultor seu Mario Pascoalli.

“Com a crise econômica e as retenções, não sobraram muitas alternativas. Por isso, estamos plantando pelo terceiro ano consecutivo, soja sobre soja”, justificou seu Mario.

Quem manteve a rotação de culturas, não fez pensando em dinheiro e sim na preservação do solo.

Esse é o caso de Daniel Perez. Filho e neto de agricultores, ele sempre viveu no campo. Hoje, toca os negócios da família junto com o pai. “Sempre respeito à regra dos 30%. Faço 30% da área com sorgo ou milho, 30% com trigo ou ervilha e 30% de soja. Eu não analiso custo por um único cultivo. Se olho só o custo do milho, certamente não vale a pena. Mas penso no benefício que vou ter com a soja que vou plantar no ano que vem. A rotação vai me dar umas 500 sacas de soja a mais por hectare”, avaliou.

Daniel explicou que só para pagar os custos de plantio, manejo e colheita do milho tem que produzir pelo menos 6,8 mil quilos por hectare. “Nos últimos cinco anos, a média de produtividade da região ficou em 6,5 mil quilos por hectare. Mas a gente faz pela média. Uma cultura te dá 20% de lucro e outra te dá 5% de prejuízo”, completou.

E não são só os agricultores que andam quebrando a cabeça pra pagar as contas. Segundo a Coninagro, confederação que representa as cooperativas do país, nos últimos cinco anos, a Argentina perdeu cinco dos 15 mil tambos ou propriedades produtoras de leite, que existiam no país. São cinco tambos fechados por dia. Hoje, só consegue se manter no negócio quem é muito eficiente.

Um tambo produtivo, bastante profissional, há 390 vacas em lactação e uma produtividade que chega a uma média de nove mil litros de leite por dia. Mesmo assim, o veterinário Hugo Bisca, administrador da propriedade, contou que o tambo vem passando por muitas dificuldades. A seca arrasou os pastos e foi preciso investir mais na compra de ração. Ao mesmo tempo, o governo estabeleceu um preço de corte para a exportação de leite em pó.

“O corte começou em US$ 2,6 mil a tonelada e chegou a US$ 3,1 mil. Tudo que passasse disso ficava para o governo. Assim, como os preços internacionais estavam bons, as indústrias não podiam repassar para o produtor. No final do ano passado, o corte foi retirado, mas já não adiantava porque a crise econômica mundial derrubou o preço do leite em pó no mercado internacional”, explicou Bisca.

Na administração da presidenta Cristina Kirschiner ninguém fala sobre o conflito com o campo. A equipe de reportagem tentou diversas vezes conversar com o governo da Argentina, através do Ministério da Agricultura, para falar sobre as reclamações dos agricultores. Mas ninguém se prontificou receber os repórteres.

No campo, o cenário é de incerteza, de preocupação com o futuro. A casa de Daniel e Mariza Berdini fica na zona rural de Ramallo, a 200 quilômetros de Buenos Aires. Muito simpáticos e gentis, com em geral é todo o povo do interior da Argentina, eles receberam a equipe com café e fiambres, os embutidos, que são tradicionais pelo lugar.

“Já tem 24 para 25 anos que estamos casados. Nós temos duas meninas, uma de 23 e outra de 20 anos”, contou dona Mariza.

O casal faz questão de mostrar como está bonita a lavoura de trigo. Perguntado sobre porque decidiu plantar trigo, quando muitos desistiram da cultura, Daniel responde: “bom, porque começou a chover de novo e por necessidade, porque perdemos praticamente toda a safra 2008/2009; então, precisávamos fazer alguma renda; e só dava para fazer trigo, que é a única cultura que podemos plantar no inverno, no segundo semestre”, falou.

“Com a crise, tivemos que cortar muitas coisas. Antes, a gente comprava o que precisava sem pensar muito. Agora, não. Deixamos de comprar o que é melhor para comprar o mais barato. Minha filha mais velha ainda está na faculdade, mas teve que arranjar um emprego para ajudar”, disse dona Mariza.

“Na hora da raiva, a gente fala que vai largar tudo.Mas é conversa fiada. O agricultor argentino pode trocar de cultura, mas vai sempre tentar seguir produzindo”, falou Daniel.

“A gente espera que apareça uma varinha mágica que faça nossa presidenta colaborar um pouco. Porque nós do campo só queremos trabalhar, produzir e não nos deixam”, reclamou dona Mariza.

Esse ano voltou a chover normalmente na Argentina e a próxima safra promete ser melhor. Mas como as tentativas de acordo com o governo não deram resultado, os agricultores não sabem quanto nem quando vão poder exportar. E agora temem perder o espaço que levaram décadas para conquistar o mercado internacional.

Por conta da redução da área plantada com trigo na Argentina, é muito provável que a safra, que começa a ser colhida agora em dezembro, seja suficiente pra abastecer o mercado interno e deixe muito pouco pra exportação.

Provavelmente, o Brasil vai ter que recorrer a outros fornecedores para abastecer o mercado.