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Economia

Os EUA e o risco cambial

Sem uma efetiva coordenação, a "guerra cambial" vai terminar numa trágica "guerra comercial". Leia artigo de Delfim Netto.

Existe uma grande perplexidade sobre as consequências da política de afrouxamento monetário (“quantitative easing”) posta em prática pelo Federal Open Market Committee (Fomc) do Fed, o banco central dos EUA. Perplexidade interna e externa! No início da crise, o Fed comprou quase US$ 1,8 trilhão de ativos (60% do PIB brasileiro de 2010), inundando de liquidez seu mercado interno. Diante dos resultados insatisfatórios dessa política, decidiu comprar mais US$ 600 bilhões de títulos do Tesouro até o segundo trimestre de 2011, à base de mais ou menos US$ 75 bilhões por mês. Continuará a recomprar o principal das aplicações anteriores que estão vencendo (mais ou menos US$ 35 bilhões por mês). Com isso, as compras e recompras do Tesouro nos próximos oito meses serão da ordem de US$ 110 bilhões mensais, totalizando, praticamente, mais US$ 900 bilhões. O seu efeito dependerá da capacidade de Obama de recuperar a confiança do setor privado.

A explicação para esse esforço redobrado do Fed está, como disse o chairman Bernanke, no fato que o seu mandato exige que o Fomc objetive, simultaneamente, “o máximo nível de emprego” e a “estabilidade dos preços”. O problema é que hoje os dois objetivos estão se distanciando. Nas suas próprias palavras, “a maioria das avaliações da inflação estrutural sinalizam algo abaixo de 2%, ou um pouco menor do que a taxa que a maioria dos estrategistas do Fed considera mais adequada para um vigoroso crescimento econômico a longo prazo”. Em suma, o Fed precisa criar uma expectativa de inflação e não cuidar do equilíbrio mundial! Por outro lado, “o nível de desemprego está inaceitavelmente alto, quase 10%”.

De fato, a despeito da recessão ter “oficialmente” terminado, o setor da construção civil permanece em coma. A relação entre o número de empregos e a população civil em idade de trabalhar está num dos seus pontos mais baixos, diminuindo a procura de emprego pela crença de não poder encontrá-lo; parte da população com mais de 65 anos voltou a procurar emprego (de qualquer natureza), porque viu suas poupanças destruídas pela crise financeira. Não é, portanto, sem razões objetivas que a “confiança” dos empresários e consumidores se encontra em níveis muito baixos, aumentando a indisposição para o consumo e para o investimento.

Excedente de liquidez deverá ir para a especulação financeira

Hoje, com o benefício de o “futuro” ter se tornado “presente”, é evidente que o grande esforço com múltiplos focos do governo Obama produziu mais calor do que luz. Numa larga medida, a política fiscal com seus “multiplicadores” e a política monetária com seus juros “negativos” foram incapazes de restabelecer a confiança do setor privado, que Obama, conscientemente ou não, tratou muito mal, com ameaças de intervenção e aumento de impostos num momento de grande incerteza.

Talvez a forma mais cabal de mostrar a falta de foco da política econômica e o equívoco da inversão das prioridades sociais de Obama, é considerar o tempo, a energia e os recursos que despendeu para a aprovação do seu generoso programa de direito à saúde. Ele encontrou uma – para nós incompreensível – resistência da sociedade e do Congresso. Hoje, com a maioria republicana na Câmara, ele pode ser bloqueado pelo controle das suas verbas. Parece claro, agora, que cometeu grave erro estratégico, que cresceu com a escolha do seu “time”: um conjunto de “estrelas” que não cabiam numa mesma galáxia e das quais agora está se libertando…

A maior prova de que nem a política fiscal nem a monetária produziram o que delas se esperava, é que as empresas não financeiras detêm cerca de US$ 3 trilhões em caixa e só investem em tecnologia poupadora de mão de obra (com benefícios da depreciação acelerada), o que não aumenta o emprego. O sistema bancário tem reservas excedentes da ordem de um US$ 1 trilhão e não os empresta porque ninguém solicita. Enquanto houver uma ameaça de deflação e a taxa de juro real for nula (a “armadilha da liquidez”), é pouco provável que qualquer aumento de liquidez possa estimular fortemente a economia real dos EUA, pela simples e boa razão que o “dinheiro distribuído de helicóptero” (como lembrou o ministro Mantega) não será gasto internamente, porque valerá mais amanhã. As consequências de mais longo prazo dessa política para os EUA e o mundo, quando a situação mudar, poderão ser muito sérias, mas é assunto para outro artigo.

No curto prazo, deverão induzir uma valorização ainda maior das moedas dos países emergentes exportadores de produtos primários, como é o caso do Brasil. O “excedente” de liquidez vai ser encaminhado para a especulação financeira, desesperada em busca de qualquer rentabilidade positiva. Nas atuais condições de pressão e temperatura, a desvalorização do dólar e do yuan vai aumentar o preço das matérias-primas que exportamos e pressionar a inflação. O enorme diferencial de juros e as condições favoráveis vão continuar atraindo o capital para nossa bolsa e podem nos levar a “importar” bolhas.

Temos de falar alto em Seul contra a política americana, mas não poupar a chinesa! Sem uma efetiva coordenação, a “guerra cambial” vai terminar numa trágica “guerra comercial”.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.