A deterioração é a maior responsável pelas perdas econômicas nas indústrias processadoras de carne e de produtos derivados. O problema é causado por reações químicas que ocorrem em sua porção gordurosa, ou lipídica, desencadeadas pela ação da luz, do corte ou moagem, do cozimento e do armazenamento. Não raro levam à perda de qualidade e consequente rejeição do consumidor. Estas reações, responsáveis pela formação de vários compostos que alteram as características sensoriais dos produtos, produzem odores e sabores desagradáveis, diminuem o valor nutricional do alimento e podem até mesmo ser nocivos à saúde.
Para evitar estes inconvenientes, são utilizadas substâncias com a finalidade de retardar tais transformações, os chamados antioxidantes. Atualmente, o consumidor mais esclarecido procura evitar alimentos que contenham aditivos sintéticos, o que tem levado à sua substituição por produtos de origem natural. Para isso, têm sido usados condimentos, ervas, frutas, hortaliças e vegetais que contêm compostos com ação antioxidante.
A atuação de dois condimentos, a sálvia e o alho, como conservantes ou antioxidantes naturais na carne de frango foi objeto de pesquisa que deu origem à tese de doutorado de Lilian Regina Barros Mariutti, desenvolvida na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp e na Universidade de Copenhagem, na Dinamarca, sob orientação da professora Neura Bragagnolo, do Laboratório de Química de Alimentos, do Departamento de Ciências de Alimentos da FEA. A pesquisa foi financiada pela Fapesp.
O trabalho objetivou verificar a influência desses condimentos na formação de compostos oriundos da oxidação dos lipídios e na degradação de alguns constituintes nutricionais importantes, como os ácidos graxos insaturados e a vitamina E, quando o frango é grelhado ou processado sob alta pressão e também quando armazenado sob refrigeração e congelamento.
Paralelamente, a pesquisa se deteve na ação desses condimentos na formação de óxidos de colesterol, formados a partir da oxidação do colesterol naturalmente presente na carne de frango, e que são relacionados ao desenvolvimento de doenças degenerativas como o mal de Alzeimer e a catarata, ao câncer e à aterosclerose.
Surpreendente e diferentemente do esperado, a adição de alho aumentou a formação dos compostos indesejáveis, acelerando o desenvolvimento da oxidação da carne de frango e a consequente perda de qualidade do produto, principalmente durante o processo de armazenamento.
De outro lado, a adição de sálvia à carne de frango foi eficaz na contenção da oxidação lipídica e na formação de óxidos de colesterol em todas as condições testadas, detendo inclusive os efeitos oxidantes do alho quando juntada a ele.
Lílian explica: “Fizemos uma pesquisa prévia para determinar in vitro que condimentos ou ervas teriam potencial como antioxidantes. Testamos salsa, sálvia, alecrim, cebola, coloral, alho e vários outros, cujos resultados foram publicados no Brazilian Archives of Biology and Technology. Como deveríamos selecionar apenas alguns, optamos pela sálvia, que pertence à mesma família botânica do alecrim, que é o condimento mais estudado na atualidade, e por isso já utilizado em vários alimentos como carne de frango, carne suína, e óleos vegetais”, afirmou a pesquisadora.
Além disso, prossegue Lilian, nos testes preliminares in vitro a sálvia apresentou poder antioxidante maior que o próprio alecrim. Segundo ela, a escolha do alho se deu devido à diferença no mecanismo de ação esperado e pelo fato deste ser muito apreciado e utilizado na culinária brasileira. “Embora o alho tenha revelado atividade discreta nestes estudos preliminares, fomos levados mesmo assim a selecioná-lo, porque constatamos que existem várias publicações bastante controversas sobre sua ação, que ora o apresentam como de ação pouco significativa, ora como fator pró-oxidante e ora como eficiente antioxidante”.
Lilian esclarece que os estudos in vitro não permitem deduções quanto à ação da sálvia e do alho na carne de frango, pois é muito importante ter em mente que os resultados in vitro não serão necessariamente reproduzidos no alimento e, da mesma maneira, podem apresentar-se diferentes nos organismos humanos, assim como o efeito observado na carne de frango não obrigatoriamente se repetirá em outro tipo de carne ou alimento. Existem vários fatores intervenientes como a composição do alimento, o modo como foi processado e como foi conservado, sendo que todos eles determinam a ação dos condimentos.
A escolha
A carne de frango foi escolhida porque é muito consumida no Brasil, tem preço acessível, possui mais de 60% da gordura, é constituída por ácidos graxos insaturados, o que a torna suscetível à oxidação e viabiliza o estudo da ação dos condimentos sobre ela. Os ácidos graxos insaturados são benéficos à saúde e por isso devem ser preservados, evitando que se degradem, o que pode gerar produtos nocivos ou sensorialmente desagradáveis.
Mas existem outros fatores que justificam a escolha, segundo Lílian. O Brasil é o terceiro maior produtor mundial de carne de frango e o principal exportador, sendo a região Sul responsável por 52% da produção nacional e por 75% das exportações. A avicultura é o segundo item na pauta de exportações do agronegócio brasileiro e o quinto item da balança comercial do país. De acordo com as estimativas do Departamento de Agricultura dos EUA, em 2008 o Brasil foi o quarto maior consumidor de carne de frango do mundo, atrás apenas de EUA, China e União Européia. Cada brasileiro consome em média 38 quilos de carne de frango por ano.
A avicultura brasileira destaca-se também pelo aumento da exportação de produtos com maior valor agregado, prontos para consumo, que atendem o conceito de alimentos saudáveis, de rápido preparo e com demanda crescente no exterior. Tais produtos, de longa vida de prateleira, exigem uso de aditivos e outros métodos de conservação que mantenham suas características organolépticas.
A pesquisa
No início, a pesquisa se deteve na otimização e validação de métodos para a determinação simultânea de colesterol e onze óxidos de colesterol por HPLC -UV-RI-MS – publicados no Journal Agricultural Food Chemistry – e na determinação de aldeídos voláteis pela técnica de SPME-GC em carne de frango.
O trabalho de investigação consistiu na adição de sal, sálvia e alho desidratados em hambúrgueres, separadamente e conjuntamente. Os hambúrgueres crus e grelhados foram embalados em sacos de polietileno permeáveis ao oxigênio e estocados no escuro a menos 18 graus Celsius durante 90 dias. Análises periódicas permitiram acompanhar o processo oxidativo.
A adição de 0,1% de sálvia à carne de frango mostrou-se eficaz em minimizar e retardar a oxidação dos lipídios e do colesterol durante o processo térmico e o armazenamento, sendo também capaz de reduzir os efeitos pró-oxidantes da adição de 0,5% de sal.
Por outro lado, a adição de 0,1% de alho em peito de frango apresentou comportamento variável de acordo com a metodologia analítica utilizada para a avaliação da oxidação lipídica, sugerindo que o alho não tem efeito antioxidante nessa matriz, podendo inclusive acelerar o processo de oxidação.
Além disso, a professora Neura esclarece que o processo oxidativo foi verificado também através da formação de óxidos de colesterol, compostos considerados prejudiciais à saúde humana, analisando a cada 30 dias amostras de hambúrgueres crus e grelhados armazenados sob congelamento durante 90 dias. “Também neste caso o objetivo foi estudar as condições de preservação da molécula do colesterol, o que exigiu uma série de investigações e testes que permitissem acompanhar o que acontecia tanto com os ácidos graxos como com a molécula do colesterol”.
Estes estudos permitiram constatar que todas as amostras que receberam adição de sal apresentaram maior formação de óxidos de colesterol e diminuição dos ácidos graxos insaturados quando comparadas com as respectivas amostras sem sal. Ou seja, o sal sempre foi um fator catalítico das reações indesejáveis. Já as amostras com sálvia, mesmo aquelas com sal, apresentaram os menores teores de óxidos de colesterol dentre todas e foram as únicas que conseguiram preservar os teores de ácidos graxos, tanto durante o processo de aquecimento como no período de armazenamento por 90 dias.
Segundo Lilian, as diferenças observadas foram muito significativas. A pesquisadora realizou ainda determinações para medir a formação de aldeídos voláteis, geralmente associadas aos odores desagradáveis, e os resultados referendaram a ação positiva da sálvia na manutenção da composição e da qualidade da carne de frango crua e grelhada quando estocada sob congelamento.
A adição de alho levou aos piores resultados até mesmo quando comparados aos observados no frango que não sofreu nenhuma adição. Não foi capaz de manter os teores de ácidos graxos e, na amostra que também recebeu adição de sal, a formação de óxidos de colesterol revelou-se muito maior do que do frango de controle e maior ainda do que no frango com apenas sal.
Em Copenhagem, Lilian estudou o efeito destes antioxidantes quando a carne de frango foi submetida à alta pressão. A aplicação de alta pressão em alimentos é uma tecnologia emergente, capaz de realizar uma “pasteurização a frio”, ou seja, eliminar os microorganismos patogênicos dos alimentos sem causar as alterações devidas ao tratamento térmico, e já vem sendo utilizada com sucesso na Europa, Japão e EUA.
Neste caso, a sálvia também foi capaz de conter a oxidação lipídica durante o armazenamento a quatro graus Celsius por duas semanas, enquanto o alho teve efeito pró-oxidante, que foi parcialmente minimizado pela adição simultânea de sálvia. Além disso, Lilian investigou também os possíveis mecanismos envolvidos na ação da sálvia e do alho no retardamento ou aceleração da oxidação lipídica. Esses estudos foram realizados através da espectrometria de ressonância paramagnética, que permite quantificar a formação de radicais livres, que constitui o evento inicial da oxidação lipídica. Os resultados foram publicados na European Food Research and Technology.
Segundo Lilian, em relação ao mecanismo de ação, ficou demonstrado que a sálvia, através de seus compostos polifenólicos, desativa os radicais livres produzidos no início da decomposição dos lipídios, impedindo que se desenvolvam as reações em cadeia e não se produzam novos compostos. “No caso do alho, os resultados sobre o mecanismo envolvido não foram conclusivos, necessitando de investigações complementares que estão em andamento”.
A pesquisadora acrescenta que os resultados experimentais permitem concluir que a adição de 0,1% de sálvia à carne de frango é efetiva como antioxidante, garantindo a composição de ácidos graxos insaturados e minimizando a formação de óxidos de colesterol e de aldeídos durante o processamento e o armazenamento. Já a adição de alho não é capaz de conter a oxidação lipídica e, em alguns casos, age até como pró-oxidante. Ela afirma ainda que a sálvia é também capaz de conter essa ação do alho quase que totalmente e que seu mecanismo de ação se dá pela desativação de radicais livres.