Duas arbitragens envolvendo a JBS e a holding J&F estão opondo argumentos e estratégias de acionistas minoritários, administração e controladores, numa batalha jurídica que envolve mais de R$ 12 bilhões, naturalmente grandes bancas societárias e que pode estabelecer alguns precedentes para o mercado de capitais brasileiro.
A história começou há cinco anos, mas a temperatura veio a ponto de fervura nas últimas semanas, com acusações de supostos conflitos por todo lado – nas escolhas de árbitros, na atuação de advogados, identidade de investidores, legitimidade de demandas, pedido de indenização. Ambas tratam de ressarcimento à JBS pelos controladores, por atos confessos de corrupção. As arbitragens são sigilosas, mas têm pontos discutidos em manifestações à CVM – o Pipeline pediu vista do processo à autarquia.
A primeira arbitragem, aberta ainda em 2017, é movida pelo fundo SPS e pelo investidor Aurélio Valporto, que se utilizam de um recurso previsto na lei das S/A para que minoritários se posicionem em companhias com controlador definido. A segunda, aberta no início deste ano, tem no polo ativo a própria JBS, num procedimento alheio à vontade da administração da companhia, mas definido em assembleia de acionistas e provocado pelo BNDES.
Processos envolvendo o mesmo tema tendem a ser unificados, normalmente no mais antigo ou naquele de maior escopo, por orientação dos tribunais de arbitragem – com uma decisão adiante, o momento é crucial para ambas.
A JBS entrou com pedido de extinção do primeiro processo, alegando que a decisão da assembleia é soberana e que, como é a companhia a parte na discussão, deve ela tomar as rédeas. A administração da companhia é quem havia recomendado aos acionistas, na assembleia solicitada no ano passado pelo BNDES, que votassem contra uma nova arbitragem, já que havia uma em andamento tratando do tema.
O entendimento do grupo da primeira arbitragem é que ela não só é mais antiga, como mais ampla em sua demanda financeira e menos lesiva à companhia em caso de derrota. Esse processo abrange mais de R$ 12 bilhões por incluir a sobrevalorização feita na aquisição do frigorífico Bertin para desvio de capital, ponto abordado na delação dos Batista – fora isso, o processo giraria em torno de uma discussão de R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões. Por ser movido pelos acionistas, em caso de derrota são eles quem pagam os custos do processo, e não a JBS.
Além disso, na arbitragem aberta pela companhia, a J&F já fez um pedido contraposto para que seja ressarcida em parte dos R$ 10,3 bilhões que pagou nos acordos de delação – grana que saiu dos controladores. O pedido levanta polêmica inclusive na administração. Em um comunicado recente, a JBS destacou que, no acordo de leniência entre J&F e MPF “previu-se, de modo expresso, que a responsabilidade pelo pagamento da penalidade era exclusiva da acionista controladora”.
Um lado entende que esse pedido não pode mais ser feito no primeiro processo porque ele já passou da etapa de discussão de mérito e de demandas e entra agora na fase de produção de provas – o que seria mais um argumento para que a companhia se interessasse em manter essa ação. O outro lado, no entanto, acredita que, como o assunto já aparece nas linhas de defesa, teria que ser tratado de qualquer forma em caso de uma definição da indenização, mesmo sem constar como pedido subsidiário. A diferença é que o pedido contraposto do segundo processo tem natureza autônoma – ele pode existir independentemente do desfecho da arbitragem.
A indenização, aliás, provocou uma certa trapalhada da companhia em seus comunicados públicos. O colunista Lauro Jardim, de O Globo, publicou em primeira mão que a J&F estava pedindo indenização à JBS, no que seria um novo processo arbitral. A companhia negou a informação num dia e, cinco dias depois, teve que retificar o jogo semântico – a holding entrou com o pedido num processo já em andamento.
No primeiro comunicado, a companhia emendou uma reclamação à CVM sobre SPS e Valporto estarem disseminando informações equivocadas e constrangendo a administração. Como ratificou a informação depois, agora são os minoritários citados que se dizem difamados e dispostos a abrir uma ação contra o departamento de relações com investidores.
Do lado da JBS e J&F, o entendimento é que incluir o caso do Bertin na discussão de indenização não faz sentido porque a companhia não teria sofrido impacto disso – o sobrepreço teria afetado os então acionistas com um excesso de diluição, e não as contas da empresa. SPS e Valporto não eram acionistas à época, ponto bastante criticado ao longo da defesa dos controladores e atrelado ao prêmio que podem obter na arbitragem. Respondendo por cerca de 0,3% do capital, os dois investidores se tornaram acionistas depois dos atos de corrupção cometidos e delatados.
O mérito de incluir o Bertin no pedido, uma vez que o patrimônio integralizado à companhia não foi aquele apontado na aquisição, caberia ao tribunal arbitral e não numa escolha da JBS, na defesa dos minoritários. O caso dos Bertin, a propósito, virou um inquérito policial na 5a Vara Criminal Federal de São Paulo este ano, de ordem tributária contra a família vendedora.
Pelo tamanho da posição e data em que se tornaram acionistas, a legitimidade para pedir o processo seria creditada, na linha de argumentação da empresa, ao BNDES, segundo maior acionista da JBS, e à assembleia. O Pipeline questionou o BNDES sobre sua avaliação da primeira arbitragem, sua posição sobre sua eventual extinção e razão pela qual o banco não aderiu a esse processo e preferiu optar por um segundo procedimento. “A primeira arbitragem está protegida por sigilo e a BNDESPAR desconhece seus termos. Por isso, não é possível proceder qualquer manifestação sobre esta”, respondeu o banco em nota.
Diferentemente de outros países, não há uma regra no mercado de capitais brasileiro que vete demandas judiciais de quem se tornou acionista após um evento em questão. Com o clima quente desse embate, isso ajudou a alimentar uma teoria conspiratória que cogita o envolvimento da Paper Excellence no jogo de interesses na JBS. A J&F pede que a SPS detalhe quem são os cotistas de seu fundo, para se assegurar de que não são oponentes dos interesses da empresa ou mesmo se não há vínculo desse investidores com árbitros do processo.
A Paper Excellence apareceu de forma inusitada nas linhas do processo. O escritório Bermudes, que advogado para SPS e Valporto, apontou um possível conflito de interesses entre JBS e J&F ao identificar na autoria eletrônica de um documento produzido pelo Warde Advogados o nome de uma advogada do Munhoz Advogados. Warde advoga para JBS e Munhoz para a J&F, uma mistura que indicaria que Francisco e Chico são a mesma pessoa nesse caso, jogando por terra a independência da companhia para se posicionar contra seus donos.
Warde rebateu que a advogada já foi sua funcionária, cinco anos atrás, e que o modelo eletrônico foi reutilizado na peça. Em varredura semelhante, Warde identificou o escritório Trindade Advogados nos metadados de um documento da defesa da SPS e pediu explicações, apontando que Trindade é um dos escritórios que defende a Paper Excellence na briga contra a J&F sobre a Eldorado. O escritório Trindade teria sido contratado recentemente pela SPS para manifestações na CVM.
As desconfianças e alfinetadas sobre escritórios e árbitros estão por toda parte nas arbitragens, no que os envolvidos definem como “coincidência de personagens”, seja por amizade estreita entre advogados, autoria de livros em conjunto, sociedade em determinados negócios ou participação em outras ações com polos semelhantes.
Um risco apontado por um lado é que a extinção da arbitragem dos minoritários para seguir com uma da empresa pode jogar uma pá de cal no artigo 246, desestimulando o posicionamento de pequenos acionistas contra mal feitos de donos. Do outro, é que o instrumento crie um mercado de litígios que suprima o interesse das companhias.
Há poucos pontos de consenso. A J&F e JBS argumentam que os minoritários estão interessados apenas no prêmio – previsto na lei, os acionistas assumidamente têm esse interesse. Já os minoritários apontam que a J&F quer fazer uma compensação de valores com a JBS – o pedido da holding busca de fato zerar ou reduzir o saldo em caso de derrota. Essa matemática pode ser bastante complexa, ao tentar segregar o que foi ato de J&F e o que foi ato de JBS, e ainda os efeitos nos balanços, uma vez que a companhia não parou de crescer e segue registrando recordes de resultados.
Além disso, as partes parecem concordar em seus argumentos que o sigilo de arbitragens é um desserviço para uma companhia aberta e que esse embate deve ser longo. Procurada pelo Pipeline, a JBS disse que “o procedimento arbitral é sigiloso, razão pela qual a companhia não pode se manifestar sobre o tema.” J&F, SPS e Valporto não comentaram.