Rubens Valentini não tem papas na língua quando o assunto é a relação contratual entre suinocultores e indústrias. Com a objetividade e sinceridade que lhes são características, o agora conselheiro para Mercado Interno da Associação Brasileira dos Criadores de Suínos (ABCS), lista um a um os pontos que julga necessário serem revistos para o estabelecimento de uma relação mais equilibrada entre indústrias e produtores.
O assunto está na ordem do dia desde o anúncio da fusão das duas maiores integradoras do País, a Sadia e a Perdigão.
Para a ABCS, a criação da Brasil Foods é uma “oportunidade histórica” para colocar o assunto em discussão. “Esta é a hora de debatermos com as empresas, com o governo, com o conjunto da sociedade as bases de uma relação de mercado que paute o crescimento do setor em bases modernas e sustentáveis”, afirma o conselheiro da ABCS.
Numa entrevista franca, Valentini critica o atual sistema de formação de preços no mercado, o chamado “preço Sindicarnes”, fala sobre o atual modelo de integração e propõe uma série de mudanças para o estabelecimento de uma relação mais equânime entre indústria e produtores.
A íntegra deste bate-papo você confere a seguir.
Suinocultura Industrial – Na opinião da ABCS quais as principais deficiências do sistema de integração nos moldes em que ele é executado atualmente?
Rubens Valentini – Antes de falar do sistema de integração especificamente, é preciso dizer que há um aspecto fundamental, que diz respeito também ao sistema de integração, mas principalmente à suinocultura em geral, que é esta famosa distorção que se chama preço Sindicarnes.
Trata-se de uma brutal distorção que conspira contra o produtor, seja ele independente ou integrado. Não é possível mudar a suinocultura, seja ela independente ou integrada, sem antes alterar essa situação de controle de preços pelas indústrias.
Falando especificamente sobre o sistema de integração, o primeiro ponto que, acreditamos, precisa ser revisto é o da remuneração do produtor. Não pode estar previsto no contrato que o produtor vai receber o preço Sindicarnes ou com base no preço Sindicarnes. Infelizmente, isto é o que está escrito na maior parte dos contratos de integração.
Mas existem outros pontos a serem discutidos. Há, nos contratos, uma série de aspectos que são eminentemente viesados.
A questão do prêmio pago ao suinocultor, por exemplo.
Além de receber um determinado preço por sua produção, o produtor recebe prêmios ou deságios por desempenho tecnológico. É a indústria quem estabelece os prêmios, os deságios e os índices tecnológicos. No entanto, o produtor só toma conhecimento desses índices tecnológicos depois que entregou o lote. Ora, essa sistemática está meio esquisita, não? Isso precisa ser revisto.
Outra coisa importante, hoje, a maior parte dos contratos são de comodato. Mas de quem é o passível ambiental? Apenas do produtor. Isso tem que mudar.
E por aí vai. É essa nossa discussão no âmbito do Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica, autarquia vinculada ao Ministério da Justiça], porque é o único lugar onde os representantes da indústria não poderiam fugir. Agora eles já estão sinalizando que querem conversar fora do Cade. Ótimo, a ABCS não foge do debate. Só que essas reivindicações nós temos há quatro anos e a indústria nunca quis nos ouvir.
SI – Em sua opinião o que muda na relação entre integrados e integradoras com a criação da Brasil Foods?
RV – Acredito que, se não obtivermos sucesso, ficará tudo como sempre foi. Porque, embora em algumas situações a Perdigão tenha contratos mais equânimes, também não é lá uma maravilha.
Basta eu lhe dizer que eles pagam pelo preço Sindicarnes e isso está errado, precisa ser revisto. Então acho que se não tivermos sucesso em nossa negociação tudo vai ficar mais ou menos a mesma coisa.
SI – Em sua opinião a fusão entre a Sadia e a Perdigão pode significar perda do poder de barganha dos produtores integrados no momento de negociar preços e custos?
RV – Qual é o poder que o produtor tem hoje para negociar preços e custos? Não é possível perder o que não se tem.
SI – A ABCS entende que o sistema de integração acaba por exercer uma influência nefasta na formação do preço do suíno…
RV – Não, não é o sistema de integração, é o conluio, é o cartel das indústrias produtoras. É o Sindicarnes em Santa Catarina, é o SIPS no Rio Grande do Sul…
SI – O senhor afirmou recentemente que “a indústria dá prêmios e impõe deságios que não têm referência pública ou isenta”. O que isso significa exatamente?
RV – É fácil de entender. O prêmio que a indústria concede ao produtor é por desempenho. Mas como é que o produtor tem que se desempenhar para receber o prêmio? Produzindo um suíno melhor, presumo, de forma mais eficiente. Mas isso precisa ser discutido entre as partes e ficar explícito antes do ciclo de produção, o que hoje não acontece.
Por outro lado, por exemplo, meus suínos tinham uma conversão de 70%. E agora têm 72%, mas a indústria me diz que precisa ser 74% porque “todo mundo está fazendo 72%”. Ora, o suinocultor caminha, caminha, caminha, e fica sempre no mesmo lugar.
Isso acontece porque a indústria tem a capacidade de administrar a renda. Na suinocultura integrada o produtor não quebra, até porque se ele quebrar prejudica a indústria. Mas a indústria o mantém vivo com a água até o pescoço…
SI – A ABCS reclama que “o preço definido pelas indústrias nas parcerias (“Sindicarnes”) baliza, na prática, as cotações no mercado spot …
RV – Sim. Se a empresa grande diz que vai pagar x como é que uma empresa menor vai dizer que vai pagar x + y? Não há como. Isso acaba nivelando os preços por baixo.
SI – O que poderia ser feito para corrigir essa situação?
RV – É preciso haver um mecanismo de referência de preços que é exatamente o que queremos negociar no âmbito dessa discussão.
SI – Isso significa a intervenção do poder público?
RV – Deus nos livre, de jeito nenhum. Isso significa um mecanismo discutido, montado em comum acordo entre produtores e indústria, e eventualmente até o varejo. Um mecanismo que seja levantando e acompanhado por uma entidade confiável, imparcial, com capacidade científica para administrar essa tarefa.
Por exemplo, três vezes por semana uma determinada universidade apresenta uma referência de preços baseados em critérios discutidos e definidos pelas partes interessadas. A ABCS vem estudando a construção de um mecanismo desse tipo.
SI – A ABCS estava estudando também a criação de uma câmara de arbitragem para regular essas relações comerciais…
RV – Isso é apenas uma sugestão. Quando se tem um negócio com muita gente envolvida como é que se solucionam as controvérsias? É necessária a existência de um mecanismo de solução de controvérsia. A justiça no Brasil é muito morosa. Seria muito proveitoso se existisse algo como uma câmara de arbitragem para resolver pendências desse tipo.
SI – O senhor acredita ser possível construir um modelo de integração que seja bom para o integrado e a integração?
RV – Sim, acredito. Tanto o modelo de integração como o mecanismo para formação dos preços precisam ser equilibrados. Isso não quer dizer que o suinocultor eventualmente não vai perder dinheiro no futuro. Mas também não vai perder dinheiro em tempos bons para a indústria. Isso é o que está errado.
SI – A ABCS contratou uma empresa de assessoria administrativa e jurídica para avaliar o impacto da fusão entre Sadia e Perdigão na produção e comercialização de suínos…
RV – Não, não é exatamente assim. Nós entramos no Cade como a figura jurídica “terceiros interessados”. Para discutir questões perante o Cade é necessário colocá-las em termos jurídicos e econômicos adequados. Então, contratamos advogados e economistas. Na verdade estamos em processo final de contratação, estamos conversando com esses profissionais para definir os termos do trabalho para que tenhamos essa assessoria técnica de qualidade.
SI – Qual avaliação o senhor faz da audiência pública conjunta das Comissões de Defesa do Consumidor, Desenvolvimento Econômico, Agricultura e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados que discutiu a fusão entre a Sadia e a Perdigão, realizada no dia 25 de agosto?
RV – Foi bastante interessante. As duas empresas em processo de fusão estavam representadas pelos seus presidentes-executivos. Eles se manifestaram, todos os envolvidos na produção de suínos e aves se manifestaram, produzindo um debate interessante.
A própria postura dos dois presidentes mostrou que há espaço para discussão. Os argumentos deles não foram de oposição flagrante a algumas manifestações dos suinocultores.
A questão do preço Sindicarnes foi levantada, a criação de um mecanismo para formação de preço foi abordada, assim como a necessidade de mudança de alguns termos do contrato, e ninguém se opôs a continuar essas discussões. Ao contrário, em algumas situações ambos concordaram que algo pode ser feito. O próprio presidente Fay [José Antônio Fay], da Perdigão, revelou sua experiência na criação de um conselho para discutir a formação de preços de referência no setor de leite no Paraná. Foram abertas possibilidade de conversa, o que é muito importante para nós.
SI – O projeto de lei 4.378 que regulamenta o sistema de integração é de 1998. Em sua opinião, a lei trará avanços importantes para o produtor?
RV – Esse projeto não. Acho que pode ser discutida uma nova lei, acho até muito importante. Mas não esse projeto que está aí. O único objetivo desse projeto, que nitidamente é patrocinado pela indústria, é deixar claro e definitivo que as relações na integração não constituem relações trabalhistas. O resto continua tudo como está.
SI – Para terminar, resumidamente, o que precisa ser mudado na relação contratual entre integrados e integradora?
RV – Em última instância, é necessário que toda relação contratual seja equilibrada. Eu tenho direitos e deveres que devem ser proporcionais, de forma equânime, aos direitos e deveres do meu parceiro. E não podem esses direitos e deveres serem administrados de forma viesada para apenas um dos lados.