A difícil conjuntura interna e externa que derrubou a pecuária argentina do segundo para o sétimo lugar no ranking mundial de exportadores de carne bovina tem acelerado mudanças estruturais no setor. Uma delas é o deslocamento geográfico da produção, que migra da região dos Pampas para o norte e nordeste do país. Outra é a entrada de grandes frigoríficos, entre eles os brasileiros JBS e Marfrig, na atividade de confinamento do gado. Os Pampas, que abarcam as províncias de Buenos Aires, Santa Fé, Córdoba e La Pampa, são as terras mais férteis e de maior potencial agrícola. O norte e o nordeste têm terras mais secas e de baixa produtividade.
A fama da Argentina como produtora e fornecedora da melhor carne do mundo, construída ao longo de mais de um século, foi colocada em xeque nos últimos três anos, não pela qualidade, mas pela quantidade. Os estoques de gado estão sendo consumidos lentamente e a produção de carne baixou – embora, pelos dados oficiais, tenha crescido ligeiramente em 2008. Especialistas e produtores apontam a intervenção do governo a partir de 2005, com restrições às exportações para garantir o suprimento da demanda interna e o controle de preços ao consumidor final, como o grande responsável pelos problemas do setor.
A partir de março de 2008, uma feroz disputa política entre os produtores rurais e o governo em torno do aumento da tributação sobre as exportações piorou o clima para o agronegócio em geral e a pecuária em particular. A seca, que dizimou as pastagens e plantações este ano, arrematou o cenário negativo para a produção.
Independentemente desses fatores, “a pecuária argentina segue em um caminho irreversível, que é produzir em campos não-aptos para a agricultura. Nesse cenário, a engorda fechada em esquema de alimentação por grãos é o caminho”, disse Oscar Alvarado, presidente da El Tejar, empresa controlada por uma associação de mais de 60 famílias de agricultores, com negócios na Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Bolívia. O tema foi discutido no dia 12 em um seminário promovido pela Associação de Consórcios Regionais para Experimentação Agrícola (Aacrea), no município de Saladillo, a 150 km a sudoeste de Buenos Aires.
Depois que o frigorífico Swift, controlado pelo brasileiro JBS Friboi, anunciou em janeiro que preparava a construção de confinamento para abrigar parte de sua produção, o Quickfood, controlado pela Marfrig, comunicou no início de junho às autoridades do mercado de capitais que “começou a analisar o projeto de construção de dois confinamentos próprios, com capacidade para 22 mil cabeças cada”.
A provisão de gado próprio, proveniente de confinamento, é considerada estratégica pela empresa, que hoje tem 30 mil cabeças em confinamento, operando no sistema de “aluguel”, e outras 23 mil contratadas para entrar nos próximos meses. Miguel Gorelik, diretor de relações com o mercado da Quickfood, disse ao Valor que os confinamentos próprios serão utilizados para ” animais pesados”, ao contrário do usual no país, que é usar o sistema para engorda de animais jovens e leves para o mercado interno.
Também a El Tejar está estruturando parte de sua produção via confinamento, que deverá aumentar a participação na produção total de 10% para 20%, disse Jaime McLean, veterinário e membro de uma das famílias associadas. “Vamos usar o confinamento não como um sistema de produção, mas como uma estratégia eventual”, disse ele.
Uma das maiores empresas agrícolas da Argentina, a El Tejar tem na verdade uma pequena produção pecuária própria, com cerca de 10 mil cabeças, e uma comercialização de aproximadamente 2,7 mil novilhos e 150 touros anualmente. Porém, detém um importante negócio terceirizado na área de carne, em associação com redes de frigoríficos e distribuição, inclusive com uma marca própria que é vendida tanto no mercado doméstico quanto para exportação. McLean contou que a empresa está procurando campos nas províncias de Formosa e Salta para levar sua produção pecuária, com o objetivo de aproveitar melhor as terras na região dos Pampas para o cultivo de grãos.
O confinamento do gado tende a se expandir ainda mais na Argentina, que tem características diferenciadas se comparada com outros países produtores. Nos últimos dez anos, esse sistema passou a responder de 5% para 10% da produção. Segundo estimativas, ele pode chegar a 35% este ano.
A atividade ganhou impulso a partir de 2007, com a associação do grupo americano Tyson Foods com as empresas Cresud e Cactus Feeders para produção de carne a partir do modelo de confinamento fechado. Dados de mercado indicam que saem dos estabelecimentos entre quatro e cinco milhões de cabeças para abate anualmente. Como a maior parte é de animais jovens, que passam em torno de 90 dias na engorda, calcula-se em 1,5 milhão a quantidade de cabeças em confinamento.
“A Argentina é o único país do mundo de clima temperado com excedentes em grãos, o que significa que pode prover alimentos aos animais sem ter que importar e produzir raças entre as mais valorizadas do mundo, como as britânicas”, diz Gorelik. A proibição de uso de hormônios e antibióticos (vigente não só na Argentina, mas em todo Mercosul) também é um diferencial que conta pontos a favor, se comparado com países como Estados Unidos e Canadá, completa o executivo.
Ricardo Negri, engenheiro agrônomo e coordenador do projeto de tecnologia comercial da Aacrea, destacou a necessidade de revisão dos métodos de produção pecuária no país como resposta à nova realidade econômica. Desestimulados pelo preço interno médio de 1,40 pesos o quilo (comparado a 4 pesos que, calculam os especialistas, deveriam ser praticados se acompanhassem pelo menos a inflação), os produtores passaram a consumir os estoques, que neste ano devem cair entre dois e três milhões de cabeças. Passaram também a abater matrizes, comprometendo a oferta futura de carne. Nos últimos três anos, a oferta de carne subiu apenas 4%, o abate de matrizes cresceu 35% e as exportações caíram 30%.
De certa forma, e apesar de sequer manterem diálogo, produtores e o governo compartilham o diagnóstico sobre a necessidade de reestruturação do setor. “A pecuária está passando por uma mudança estrutural que não vai se resolver em um ou dois anos. Vai levar uns três, quatro, cinco anos para que se reacomode”, disse o secretário de Agricultura, Carlos Cheppi. “Nos últimos dez anos, a agricultura tirou entre 12 e 14 milhões de hectares da pecuária e, no entanto, não houve uma queda tão drástica na quantidade de animais. Temos que discutir quantos animais o país vai sustentar em um formato de alta produtividade, que é o que necessitamos”.
Em sua palestra em Saladillo, Negri disse mais ou menos o mesmo: a única saída para a Argentina recuperar o posto de grande produtora e exportadores de carne no mundo é elevar a produtividade. “Mudou o modelo produtivo no país e a seca está acelerando esse processo”, afirmou ele.