Adotar as normas sanitárias exigidas pela legislação brasileira é uma tarefa impossível para grande parte dos 1,5 mil frigoríficos espalhados pelo país. Essa é a avaliação do diretor da organização ambientalista Amigos da Terra, Roberto Smeraldi. “Não adianta brigar com a realidade. Frigorífico não é coisa para pequeninho. Se eles cumprissem as normas para o abate, teriam a carne mais cara do mundo”.
A constatação é baseada nos dados revelados por um estudo que a Amigos da Terra apresenta hoje, no Congresso Nacional. Entre setembro do ano passado e fevereiro, a entidade rodou o país para confirmar as (más) impressões a respeito das condições do abate de bovinos e da fiscalização dos frigoríficos de caráter estadual e municipal. Ao todo, a organização ambientalista visitou 280 unidades.
“Quando o abate acontece com inspeção municipal ou estadual, para consumo no mercado local, as normas viram letra morta”, observa o estudo intitulado “Radiografia da Carne no Brasil”. Com base no trabalho, a Amigos da Terra estima que um terço da carne que chega à mesa do brasileiro é produzida em condições bastante precárias, com pouca ou nenhuma inspeção veterinária.
Em números, são 10,6 milhões de cabeças bovinos de um total de 30 milhões destinadas ao mercado doméstico, de acordo com estimativas da organização. Além dos frigoríficos de inspeção estadual e, principalmente, municipal, essa conta inclui os abates clandestinos, estimados em 5 milhões de cabeças, explica Smeraldi. Pelas contas da Amigos da Terra, existem 1.512 frigoríficos no país, sendo que 803 estão sob o regime de inspeção municipal e 466 federal.
Segundo ele, a situação é particularmente delicada em pequenos municípios. “Criou-se uma convenção não escrita entre prefeito, veterinário e gestor do frigorífico de que só precisa carimbar a carne. Mas a inspeção precisa ser individual, boi por boi. Em muitos casos, o veterinário nem acompanha o abate”, afirma o diretor da entidade.
A questão é que, na avaliação de Smeraldi, para se adequar às normas do Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (Riispoa), os frigoríficos teriam de investir “alguns milhões”. “E você não vai fazer tudo isso para abater 20 animais por dia”, diz, sugerindo o fechamento desses frigoríficos. “No dia em que o veterinário disser que não vai assinar, o dono do frigorífico tem duas opções: ou fecha ou continua produzindo na clandestinidade. Mas aí você tem o poder de polícia para combater”, afirma.
O diretor da Amigos da Terra diz que os veterinários devem abandonar o hábito de apenas “carimbar” a carne sem inspecioná-la. Para isso, no entanto, eles terão de contar com o aparato estatal, uma vez que “sofrem pressão para não exercer suas funções com o rigor necessário”, conforme relata o estudo da organização. No que diz respeito ao “hábito”, Smeraldi pede uma atuação mais enérgica do Conselho Federal de Medicina Veterinária, cassando o registro dos profissionais que adotam tal prática. Só assim, o “acordo do carimbo” perderá força, acredita o diretor da entidade.
Smeraldi afirma, ainda, que a adoção de um sistema único de inspeção veterinária também poderia contribuir. A inspeção foi descentralizada a partir da Constituição de 1988, mas criou uma “hipocrisia”. “Um frigorífico de Ponta Porã (MS) de âmbito municipal só pode comercializar em Ponta Porã. A qualidade dessa carne deveria ser a mesma da que vai para Londres”, diz. Mas ela não é, segundo ele, por que os sistemas federal (SIF), estadual (SIE) e municipal (SIM) não conversam entre si. Nesse contexto, há um relaxamento da inspeção, já que a carne não ultrapassará as fronteiras municipais