Em uma ponta, a Sadia era chamada de “blue”. Na outra, a Perdigão foi denominada “red”. Os nomes foram atribuídos às empresas durante uma reunião na sede do banco ABN Amro Real, no dia 7 de abril de 2006, marcando o início das negociações que culminaram na primeira oferta hostil para a compra de controle de uma companhia no Brasil. O objetivo era garantir a confidencialidade da iminente proposta da Sadia pelas ações da Perdigão, frustrada em 21 de julho do mesmo ano, com a recusa dos acionistas em vender os papéis à concorrente.
A tentativa de dificultar a identificação das partes envolvidas foi em vão. Dois meses após o fim das negociações, descobriu-se que três dos executivos envolvidos haviam feito uso das informações privilegiadas a que tiveram acesso em benefício próprio, comprando e vendendo recibos de ações (ADRs) da Perdigão na Bolsa de Valores de Nova York (Nyse). Na quarta-feira, dois deles foram condenados na primeira instância da Justiça Federal por crime de “insider trading”.
O ex-diretor financeiro e de relações com investidores da Sadia Luiz Gonzaga Murat Filho foi condenado a um ano e nove meses de reclusão por crime de “insider trading”, pena substituída por prestação de serviços à comunidade. Romano Ancelmo Fontana Filho, ex-membro do conselho de administração da Sadia, foi condenado à pena de reclusão de um ano, cinco meses e 15 dias, também substituída por prestação de serviços. Ambos também ficam impedidos de exercer cargos de administrador e conselheiro fiscal de companhias abertas pelo mesmo período da pena imposta. O juiz ainda condenou Murat e Fontana Filho a pagar multas de R$ 349,7 mil e R$ 374,9 mil, respectivamente.
O terceiro executivo envolvido nas negociações da oferta hostil da Sadia que negociou ADRs da Perdigão é Alexandre Ponzio de Azevedo, à época superintendente executivo de empréstimos estruturados do ANB. Ele fez um acordo com o Ministério Público Federal e foi excluído da ação penal em troca da prestação de serviços a uma entidade filantrópica por quatro horas semanais durante seis meses e seu comparecimento obrigatório perante o juiz a cada dois meses, durante três anos. Por ter tido participação menor no caso, Ponzio de Azevedo garantiu o benefício e, com isso, se mantém sem antecedentes criminais.
O processo chegará em breve ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, já que tanto o Ministério Público Federal quanto os dois executivos condenados vão recorrer da decisão. De acordo com o procurador Rodrigo de Grandis, responsável pelo caso, o Ministério Público recorrerá para aumentar a pena de Murat e Fontana – tanto o tempo de reclusão quanto as multas aplicadas – e pedir que os desembargadores do tribunal revejam a decisão da primeira instância que negou um pedido de indenização por dano moral coletivo. Ainda assim, o procurador elogia a decisão, segundo ele, muito bem fundamentada. “É uma sentença histórica do ponto de vista do crime financeiro”, diz.
Os advogados de Murat e Fontana – os criminalistas Celso Vilardi e Eduardo Reale, respectivamente – também vão recorrer ao TRF. “A sentença foi técnica, mas partiu de uma premissa falha”, diz Reale, que acredita na reforma da condenação de Fontana no tribunal. “A condenação é absolutamente improcedente”, afirma Vilardi, que diz ter “certeza absoluta” que o TRF vai alterar a decisão contra Murat.
No processo, os dois executivos admitem que negociaram ADRs da Perdigão, mas contestam a relevância das informações que detinham no momento em que isso ocorreu – a lei diz que é crime de insider “utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado”. O cerne do debate é se uma reunião como a realizada entre a Sadia e o ABN, em que se discute uma ideia ainda incipiente de compra do controle de um concorrente, pode ser considerada relevante a ponto de influir na cotação das ações de uma companhia.