Make America Great Again foi a principal bandeira da campanha de Donald Trump em 2016, sustentada durante os quatro anos da sua gestão e na frustrada reeleição de 2020. Tratou de dois pontos com insistência: o enfrentamento da imigração de trabalhadores, com a proposta de construção de um muro na fronteira com o México; e a ruptura de acordos internacionais de comércio, em particular o enfrentamento das importações da China, com aumento de tarifas e de uma iniciada negociação direta.
A queda de renda e emprego em setores da população norte-americana é um fato — mas apresentar o imigrante e a concorrência no mercado de trabalho como responsáveis pela crise é uma saída simples. O populista opta sempre pela rota mais fácil: culpar pela crise o comércio internacional. O problema é mais complexo. Avanços tecnológicos, estruturas tributárias, previdenciárias, compromissos legais com o meio ambiente, obrigações trabalhistas, são fatores diretamente responsáveis pelo custo de produção local que exigem uma compreensão, e solução, muito mais difícil. Com o Make America Great Again, a culpa é do estrangeiro, da globalização, da falta de patriotismo.
Em seus primeiros dias de governo, Trump anunciou que exigiria a renegociação do NAFTA (North America Free Trade Agreement, em português Acordo de Livre Comércio da América do Norte), acordo de livre-comércio assinado com seus dois vizinhos, Canadá e México, e em vigor desde 1994. Em setembro de 2018, uma versão com poucas alterações voltou a ser assinada, e a ruptura americana se confirmou. Trump também abandonou a estratégia de aproximação comercial que vinha sendo negociada com os países da Ásia e Oceano Pacífico conhecida como TPP (Trans Pacific Partnership). O amplo acordo de livre-comércio proposto pretendia fortalecer a influência norte-americana na região asiática. A China não participava do acordo.
Derrotado na reeleição, Trump viu quinze países da região, muitos deles os mesmos do TPP, firmarem o RCEP (Regional Comprehensive Economic Partnership), agora liderado pela China. Este acordo constrói regras comerciais que fortalecem a produção regional. Certamente deverá atrair importantes investimentos para a Ásia, e marca o enorme fracasso da estratégia comercial de Trump.
Trump também virou as costas para a OMC (Organização Mundial de Comércio). O principal repositório de acordos de regras comerciais exige reformas urgentes, porém, sem a participação dos Estados Unidos, país que figura entre os maiores exportadores, ficou quase impossível. Restou à OMC atuar através de arbitragem na solução de controvérsias decidindo sobre interpretações divergentes das regras em vigor. Pouco a pouco os árbitros foram chegando ao fim de seus mandatos, e a ausência de novos nomes, negados pelos norte-americanos, foi paralisando mesmo essa capacidade de atuar.
Enquanto isso, a velocidade da chegada da China no comércio internacional surpreendeu. O desenvolvimento econômico, o aumento do poder aquisitivo de parcelas da população, a capacidade industrial e tecnológica e o significativo crescimento das exportações alteraram o quadro internacional em aspectos que vão além do comércio. A entrada da China na OMC foi aprovada na reunião ministerial de Seattle em dezembro de 1999, e o país asiático recebeu, em bases iguais aos demais membros da OMC, todo o conjunto de regras, objeto de anos de negociação, que ofereciam amplo acesso aos principais mercados internacionais.
Vinte anos depois, os Estados Unidos, liderados por Trump, reagiram contra o que consideraram como um desequilíbrio diante da entrada de produtos chineses. Ficaram ausentes do debate os efeitos positivos que a entrada de produtos de baixo custo teve para os consumidores norte-americanos. Trump aumentou tarifas de inúmeros produtos de origem chinesa. A China foi obrigada a negociar. Acordos intermediários foram obtidos, ou assim foi anunciado. Chegamos ao final da gestão Trump com acordos intermediários assinados que certamente frustraram os norte-americanos. Terão que ser enfrentados pelo democrata Joe Biden quando assumir a presidência.
O setor agrícola, forte base eleitoral de Trump, foi talvez o maior prejudicado resultado da guerra comercial bilateral. Os subsídios agrícolas norte-americanos explodiram, com valores muitas vezes acima dos permitidos no âmbito do Acordo sobre Agricultura da OMC. E, embora altíssimos, não compensaram a perda parcial do mercado chinês, e o dano permanece nos Estados Unidos. O Brasil e outros países foram beneficiados com a disputa.
Biden assume com um confuso quadro nas relações comerciais, não somente com a China. Os erros estratégicos da gestão Trump terão graves consequências, não totalmente compreendidas, para a economia mundial. O equívoco foi abandonar o conjunto de regras multilaterais e partir para resolver de maneira bilateral, e Trump encontrou um forte opositor. Menosprezou os 5 mil anos de experiência chinesa em comércio. Com Biden, os Estados Unidos certamente devem retornar à OMC, atuando em sua reforma.
O que fazer com os acordos intermediários negociados com a China e os expressivos aumentos de tarifas impostos a produtos chineses? Importante agenda espera Biden, que terá de renegociar com a China. Reduzir tarifas, mesmo que gradualmente, não será simples. Reduzir os subsídios agrícolas exigirá grande atenção. Será necessário retornar ao multilateralismo na OMC.
E o Brasil? Já se passaram dois anos que o presidente Bolsonaro assumiu. Difícil apontar a existência de uma estratégia comercial, se é que ela existe. É o momento para uma reflexão. Os equívocos de Trump no comércio devem servir de alerta.
O ministro das Relações Exteriores fala e escreve ideias desconexas, nas quais se inclui a idolatria a Trump. É o porta-voz do grupo que trouxe para o Brasil um discurso que valoriza um suposto nacionalismo e patriotismo, condenando o que chamam de globalismo. Difícil vê-lo como bom interlocutor nesse novo espaço de negociação internacional, no qual o Brasil historicamente se posicionava com equilíbrio, defendendo interesses comerciais claros, onde destaco os agrícolas, mesmo que divergentes dos das grandes potências.
O ministro da Economia, detentor de ideias do pensamento liberal, derrapa nas propostas de modernização da economia, essenciais para uma maior integração, sem as quais teremos enorme dificuldade em negociar acordos de livre-comércio. Reitera o interesse em ver o Brasil dentro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), grupo de países onde prosperam interesses importantes para os mercados financeiros. A ministra da Agricultura, de visão prática sobre os interesses agrícolas, foi decisiva na finalização do acordo comercial Mercosul-União Europeia que se alongava havia décadas — e que hoje enfrenta resistências na homologação pelos parlamentos dos países europeus como resultado da inépcia do Brasil na questão ambiental.
A guerra comercial Estados Unidos-China e as duas epidemias, de Covid-19 e PSA (Peste Suína Africana), ampliaram muito as exportações e preços dos produtos agrícolas. O fluxo comercial tomou tamanha dimensão que alimentou o debate interno sobre os perigos de uma dependência do Brasil em relação ao mercado chinês. Do lado brasileiro, temos milhares de produtores vendendo por meio de intermediários comerciais. Do lado chinês, um número muito menor de compradores e um governo central com enorme capacidade de intervenção nos mercados. No campo bilateral, é essencial fortalecer um relacionamento de confiança mútua, garantindo estabilidade e qualidade. Regras multilaterais, porém, são essenciais para enfrentar distúrbios imprevistos que sempre poderão ocorrer. Guerra comercial é a última coisa que queremos.
O grande desafio do país é se inserir em um mundo que, agora com Biden, parece retornar à prevalência dos acordos globais. Defender com competência os interesses do Brasil, conjuntamente com inúmeros países em desenvolvimento, na reforma da OMC será um grande desafio. É preciso reconhecer regras e entender que as negociações visando obter novos acordos por consenso de 164 países se esgotaram. Parece que os enfrentamentos que Trump imaginou resolver diretamente com a China serão transferidos para Genebra.
Novos temas, em especial a questão dos gases do efeito estufa e seus efeitos no clima, estarão na pauta, tanto do lado da valorização dos produtos positivos como da penalização daqueles que se contrapõem à discussão ambiental. O comércio é uma arma muito forte e os países desenvolvidos atuarão para utilizá-la visando seus interesses. Cumpre ao Brasil estar preparado e consciente de que é também o que desejamos — um futuro sustentável e um comércio internacional responsável. São necessárias regras claras e competentemente negociadas. Rompantes e populismos não resolvem e podem causar grandes danos. Temos a obrigação e o peso para liderar nossos vizinhos sul-americanos — o que exige, antes de tudo, saber o que desejamos e para onde queremos ir.