De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em estudos divulgados no ano de 2015, cerca de 800 milhões de pessoas sofrem com a fome no mundo. Uma em cada nove pessoas. No Brasil, são aproximadamente 7,2 milhões de afetados pelo problema. Mas, será que realmente não há alimentos disponíveis para toda a população brasileira e mundial? Intrigado por essa questão, Danilo Rolim Dias de Aguiar, pesquisador do Departamento de Economia (DEco) no Centro de Ciências em Gestão e Tecnologia (CCGT) do Campus Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), decidiu analisar a produção de alimentos no País – tanto aquela voltada ao consumo interno quanto as exportações – e investigou se seus resultados não seriam mesmo suficientes para alimentar toda a população brasileira.
Durante a pesquisa, Aguiar levantou os números da produção nacional de arroz, feijão, trigo, ovos, leite, milho, soja, banana, açúcar e mandioca, além dos da produção das carnes de frango, porco e bovina e transformou os volumes produzidos anualmente em quantidade total de calorias e proteínas, dois dos macronutrientes fundamentais em uma dieta balanceada. “Então, considerando o quanto uma pessoa necessita desses nutrientes na alimentação diária para manter uma vida saudável, pudemos constatar que sim, a produção nacional desses alimentos é suficiente para alimentar todos os mais de 204 milhões de brasileiros”, afirma o pesquisador da UFSCar.
E porque ainda há tanta gente sofrendo com a fome no Brasil? De acordo com Aguiar, a resposta a essa pergunta passa por, pelo menos, dois fenômenos principais: desperdício e acesso. Segundo pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o desperdício de alimentos no País chega a 40 mil toneladas por dia; além disso, a desigualdade social e de renda faz com que as pessoas tenham níveis desproporcionais de acesso aos diferentes tipos de alimentos. “Percebemos, portanto, que a fome não tem a ver com déficit na produção, mas com os elevados níveis de desperdício e com a baixa renda de grande parte da população que dificulta o acesso a uma alimentação equilibrada”, diz o professor.
A desigualdade social explica, portanto, o fato de o Brasil ser o quinto país no ranking mundial da obesidade e conviver ao mesmo tempo com mais de 7 milhões de famintos e mais de 30 milhões de subnutridos. “Temos um problema evidente de má distribuição de renda que gera, consequentemente, níveis muito diferentes de acesso e consumo dos alimentos mais nutritivos que são sempre mais caros”, destaca Aguiar.
O trabalho também avaliou o potencial da produção nacional de alimentos que é voltada para a exportação. Igualmente, o volume de alimentos exportado foi transformado em número de calorias e proteínas e as conclusões dão conta que, considerando as quantidades de proteína produzida e necessária em uma dieta balanceada, as exportações poderiam alimentar duas vezes a população brasileira; e considerando apenas as calorias, os alimentos que o Brasil exporta seriam suficientes para a alimentação de quase 700 milhões de pessoas. “É importante observarmos que os resultados das análises do potencial alimentar tanto da produção para consumo interno como daquela exportada podem ser considerados subestimados já que há outros alimentos produzidos no Brasil e que não foram considerados no estudo”, lembra Aguiar.
Simulações
A problemática da produção de alimentos versus a realidade da fome encontrada ao redor do mundo se depara também com outros dois agravantes: a chamada concorrência entre alimento, ração animal e biocombustível; e a crise ambiental. No que se refere à concorrência enfrentada pela produção de alimentos, ela diz respeito ao fato de, por exemplo, a criação de gado competir em espaço e insumos. “Além das enormes áreas destinadas às pastagens e que poderiam servir à lavoura, o gado muitas vezes é alimentado com soja e milho, proteínas e carboidratos que poderiam estar servindo à alimentação humana. Em última análise, é possível afirmar que os seres humanos, sobretudo os de baixa renda, estão competindo por alimentos com os animais que, diga-se, são criados e tratados para se tornarem a alimentação dos mais ricos”, avalia o pesquisador. O que também compete com a produção de alimentos é a cultura da cana-de açúcar destinada à fabricação de biocombustíveis no Brasil.
Além disso, o aquecimento global é uma preocupação central para as sociedades modernas e a produção de alimentos tem que passar a ser considerada a partir de critérios de sustentabilidade. As estimativas da ONU indicam que, em 2050, a população mundial ultrapasse os nove bilhões de indivíduos, e manter o padrão de alimentação atual é ambientalmente inexequível. “A produção de carne bovina, por exemplo, é responsável por 10% das emissões de gases do efeito estufa na atmosfera, sendo o principal emissor do agronegócio. É completamente inviável para a vida no planeta imaginar o crescimento da criação de gado para mantermos o consumo de carne nos níveis atuais”, afirma Aguiar. O professor defende que será necessário, além de uma mudança cultural no que se refere à alimentação, o desenvolvimento de sistemas produtivos menos poluentes.
A partir desse cenário de competição e de crise ambiental, Aguiar traçou três situações hipotéticas para a produção de alimentos no Brasil: e se o País deixasse de produzir alimentos de origem animal e ocupasse metade das áreas de pastagens existentes hoje em território nacional apenas com o cultivo de alimentos de origem vegetal? Essa primeira hipótese levou à conclusão de que o Brasil poderia nutrir com calorias uma população 8,7 vezes maior que a sua atual; e garantir proteínas para uma população 3,4 vezes maior. A segunda hipótese da pesquisa sugeriu, para fins de simulação, que o Brasil ocupasse com a produção de alimentos toda a área atualmente ocupada com o plantio de cana-de-açúcar destinada aos biocombustíveis. “Essa simulação revelou que poderíamos garantir calorias para uma população 1,38 maior e proteínas para uma população 1,53 maior. Concluímos, assim, que a fabricação de etanol não é um concorrente forte à produção de alimentos e permanece como alternativa importante aos combustíveis fósseis, que são muito mais poluentes”, afirma Aguiar. O terceiro cenário assumiu as duas hipóteses dos cenários anteriores, e o que se viu foi um aproveitamento muito próximo ao do primeiro cenário, porém menos sustentável, já que se perderiam os benefícios de redução de emissões de gases do efeito estufa decorrentes da utilização de etanol.
“Apesar das simulações radicais, fato é que será cada vez mais necessário repensarmos a ocupação dos espaços produtivos, criarmos sistemas de produção mais eficientes e ambientalmente sustentáveis e revermos hábitos de consumo se quisermos preservar a vida no Planeta. Entendo que são necessárias tanto ações de conscientização como também políticas públicas que incentivem a transformação dos processos de produção atuais”, defende o pesquisador.
Com apoio da Fapesp, os resultados da pesquisa foram apresentados no primeiro semestre deste ano em evento científico na Inglaterra. A intenção do pesquisador da UFSCar é aprofundar as análises sobre os três cenários simulados, descrevendo as contribuições ambientais de cada um deles; outra frente de trabalho pretende entender a produção de alimentos, as emissões de gases do efeito estufa e os hábitos de consumo por região do Brasil, para que no futuro sejam possíveis proposições de transformação localizadas e mais eficientes.