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Agroindústria

Quem manda na BRF?

<p>Apesar de ser apresentada como uma fusão entre iguais, vários sinais indicam que quem vai dar o tom da integração é a antiga Perdigão.</p>

No dia dois de setembro, cerca de 400 dos principais executivos da Sadia receberam por e-mail uma mensagem enviada por Gilberto Tomazoni, que presidiu a empresa nos últimos quatro anos e encerrava ali uma carreira de 27 anos de casa:
“Termino neste momento o meu mandato como diretor-presidente com a certeza de dever cumprido. Hoje sou uma pessoa melhor por ter liderado esse time que tanto me emocionou durante estes últimos anos pela energia, generosidade e competência. Cada um de vocês colocou a alma e o coração na construção do nosso sonho. Este é um momento de passagem — da Nossa Sadia, do Século 21 para a BRF. Uma empresa que nasce grande, não apenas pelo tamanho mas pelas pessoas que nela estão”.

A partir daquele dia, o executivo Julio Cardoso, que havia dois meses ocupava a presidência do conselho de administração da Sadia, passou a acumular os dois postos. Tomazoni não explicou as razões de sua decisão. Procurado por Exame, não deu entrevista. Sua saída aparentemente repentina, no entanto, não surpreendeu executivos mais próximos. Embora tivesse percorrido algumas das principais fábricas nos últimos meses para pregar otimismo a funcionários abatidos, ele também vinha se sentindo desprestigiado. Recentemente, chegou a comentar com amigos que percebia estar cada vez mais afastado dos primeiros planos de integração. Apesar de o negócio ter sido anunciado em maio como uma “fusão entre iguais”, Tomazoni sentia que, na prática, o pêndulo do poder estava com a Perdigão.

A troca no comando se dá num momento importante da integração das duas empresas. A partir do dia 22 de setembro, a Sadia deixa de existir na Bovespa e na bolsa de Nova York – restará apenas a BRF, que representará as duas empresas. Paralelamente, nas próximas semanas consultores da McKinsey começam a esquadrinhar os escritórios da BRF e da Sadia para fazer uma avaliação minuciosa dos processos das duas companhias – uma tarefa que deve levar cinco meses. Para muitos dentro da Sadia, o receio é que a empresa, agora sem seu presidente, esteja mais vulnerável nas mãos da antiga rival – e que o discurso inicial de uma fusão entre iguais tenha ficado para trás. “Os sinais são de que seremos transformados numa grande Perdigão”, afirma um executivo da Sadia. É uma versão que a BRF nega veementemente. “Vamos começar o plano de integração agora em busca das melhores práticas. Seria pouca ambição fazer uma grande Perdigão”, diz José Antônio Fay, presidente da BRF. “Precisamos de uma empresa melhor e não apenas maior.”

Um dos sinais de que a antiga Perdigão daria o tom veio numa mensagem enviada no final de agosto pelos copresidentes do conselho de administração da BRF, Luiz Fernando Furlan e Nildemar Secches, e da Sadia, Julio Cardoso, a todos os funcionários das duas empresas. O texto explicava a nova composição dos comitês de integração e não havia nenhuma menção ao nome do então presidente da Sadia. Antes disso, já tinha chamado a atenção do pessoal da Sadia a predominância de executivos indicados pela Perdigão para compor os dois comitês de melhores práticas, criados em julho. O primeiro, ligado ao conselho de administração, é coordenado por Vinícius Prianti, ex-presidente da Unilever e que assumiu um assento no conselho da Perdigão em 2008. Os demais integrantes são Rami Goldfajn, também ex-conselheiro da Perdigão, e Walter Fontana Filho, um dos antigos acionistas da Sadia. Já o comitê executivo responsável pelo andamento do trabalho é coordenado pelo presidente da BRF, Fay. “A estrutura dos comitês vai seguir a mais absoluta neutralidade”, diz Fay.

A aparente falta de sintonia entre o discurso da BRF e a percepção dos executivos da Sadia se explica em parte por uma exigência do Cade, com o objetivo de permitir uma eventual reversibilidade da operação (o negócio ainda não foi aprovado pela autarquia). Hoje existe uma espécie de muro chinês entre as duas empresas, que restringe a comunicação direta de conselheiros e executivos da Sadia, com seus pares na BRF. Como os antigos controladores da Sadia, Luiz Fernando Furlan e Walter Fontana, ganharam assentos no conselho de administração da BRF, a regra do Cade os impede de ter contato direto com os antigos subordinados. Assim, criaram-se uma distância e uma espécie de “sensação de abandono”, sobretudo entre os funcionários que possuem mais tempo de casa. “A falta de informação num processo de integração aumenta ainda mais a ansiedade entre executivos”, afirma Betania Tanure, especialista em comportamento organizacional e professora da Fundação Dom Cabral.

A missão de evitar que isso aconteça hoje recai quase exclusivamente sobre Julio Cardoso, que assumiu a presidência do conselho da Sadia em julho deste ano, para substituir Luiz Furlan. Ele já foi presidente de empresas como a antiga Santista Alimentos, do grupo Bunge, e a Seara. Na Sadia, porém, ele ainda é quase um desconhecido. Para mudar essa situação, Cardoso vem se dedicando a uma série de rodadas de conversas com funcionários. A primeira delas aconteceu com cerca de 200 empregados da área de vendas. “Minha missão agora é manter o espírito e a energia da equipe”, afirma Cardoso. “Nem a crise pela qual a empresa passou abalou sua liderança de mercado. Temos agora de compartilhar o sonho de que vamos criar uma empresa ainda melhor daqui para a frente.” Quanto mais demorar o veredito no Cade, mais sensível tende a ficar a situação. Segundo Fay, a expectativa é que a decisão final chegue até o começo do próximo ano. “Não podemos precisar a data da conclusão”, afirma Paulo Furquim, conselheiro-relator da fusão Perdigão-Sadia no Cade. “Trata-se de um caso complexo.” Para Furquim, o que chama a atenção a princípio é a alta participação das duas companhias em alguns mercados, como pratos prontos congelados (79,2%) e margarina (66,2%).

Por enquanto, a única exceção permitida pelo órgão regulador é a integração da área financeira, para possibilitar o fluxo de recursos da BRF para a Sadia. Em julho, a BRF obteve 5,3 bilhões de reais numa oferta pública – dos quais 66% se destinariam a reestruturar as dívidas da Sadia neste ano. Até agora, a BRF já repassou mais de 950 milhões de reais para o caixa de sua nova controlada. Mesmo assim, os executivos só podem compartilhar informações financeiras com atraso de 60 dias, de maneira que não seja possível a troca de informação que interfira na concorrência entre as duas companhias. As empresas também pediram ao órgão regulador permissão para avançar em outra frente antes de sua definição final: a integração de suas áreas de exportação. “Isso não interfere na competição dentro do mercado brasileiro”, afirma Fay. É uma maneira de antecipar parte dos ganhos decorrentes da fusão. A própria BRF estima que as sinergias totais entre a antiga Perdigão e a Sadia possam resultar em ganhos de pelo menos 500 milhões de reais em um ano. Os analistas são mais otimistas e projetam ganhos de até 2 bilhões de reais. Juntar as duas operações será uma tarefa complexa. No caso da integração de fábricas, por exemplo, a empresa vai esbarrar numa complexa rede de mais de 200 000 pequenos produtores que mantêm mais de 200 milhões de frangos vivos, em criadouros desenvolvidos ao redor de cada fábrica ao longo de décadas. “Não é fácil levar essas cadeias de um lado para outro”, afirma Fay.

Se aprovada, a integração das operações internacionais será uma espécie de reedição de uma malsucedida sociedade entre as duas empresas no início desta década, justamente sob o nome BRF. Imersas em conflitos, as duas empresas desistiram do projeto um ano mais tarde. Agora, Sadia e Perdigão vão ter a chance de escrever uma história diferente.

Reportagem publicada na Revista Exame 09/09/2009