Lutamos muito para conquistar o direito de livre expressão. Censura, nunca mais. O direito à informação, porém, aumenta a nossa responsabilidade. Os meios nascentes trazem desafios na mesma dimensão de suas potencialidades. A “informação” sem chancela, sem origem definida, sem cuidados jornalísticos, amplifica e transforma as informações produzidas pelos veículos convencionais.
O processo inspira conceitos que advogam a quebra da patente intelectual. Isto antes mesmo que nós, jornalistas, consigamos compreender o exato significado desta nova realidade. Os valores forjados no século 20, que determinaram as bases do modelo ocidental de produção da informação, parecem estar inapelavelmente contaminados por tecnologias que impõem regras inusitadas e mutantes, numa sociedade que está aprendendo a fazer História on line. Parece também inquestionável que, neste processo, a informação está perdendo qualidade, identidade. Será que a gente consegue desligar o Twitter – só um pouquinho – e parar para pensar?
A primeira pandemia da história monitorada em tempo real, a gripe dita “suína”, traz muitos ensinamentos e deixa visíveis as perigosas armadilhas do processo de comunicação no século 21. Algo que vai muito além do tema em si. Aqui, vamos falar do vírus H1N1, mas é possível que esteja em jogo talvez até mesmo o jornalismo em si, pelo menos na forma que o conhecemos. A “gripe A” provou que as mídias estão exponencialmente mais ágeis, mais poderosas e influentes. Os veículos – antes formadores de opinião – estariam se transformando em agentes diretos, conscientes e ativos de transformação da sociedade?
Um estímulo ao erro
Sobram perguntas… Até que ponto a informação repetida e multiplicada várias vezes ultrapassa a fronteira do jornalismo para visitar as mais perigosas áreas do campo do marketing? Debatemos suficientemente estas questões? A imprensa está preparada para estas transformações? Há gente nas redações em quantidade, preparo e grau de experiência para fazer frente aos novos desafios? A edição reflete a complexidade da sociedade, seus diversos pontos de vista?
Isto posto, analisemos a questão da escolha do nome “gripe suína” e dos critérios editoriais que nos fazem pensar sobre a tênue diferença que hoje separa o papel de prestar o serviço da informação e o de promover o espetáculo, provocar pânico indesejável e desnecessário.
O momento zero desta crise de qualidade de informação em escala planetária está localizado na OMS, onde, na sexta-feira, 24 de abril, uma entrevista chancelava o nome “gripe suína”. Não era a gênese de uma informação pura e simples, mas sim, de uma marca, logo depois reverberada com tal intensidade e tamanha repetição que acabou se transformando em aterrorizante ameaça. Três dias depois, porém, a Organização Internacional de Saúde Animal (OIE) emitia nota oficial condenando a expressão “gripe suína”. E lembrava: todos os outros nomes de influenzas foram apoiados na geografia: “gripe espanhola”, “gripe asiática”, “gripe de Hong Kong”.
Ora, o nome das doenças tem a função social de alertar a população, de indicar o tipo de prevenção a ser adotado. Para a população, “gripe” sugere uma doença de contágio entre humanos. Deve-se, portanto, evitar aglomerações, lavar as mãos etc… O nome “gripe suína” consagra uma inexistente conexão entre a doença e a carne, uma sugestão para que se evite o consumo do produto. Ou seja, um estímulo ao erro. Ou seja, uma informação cabalmente de má qualidade.
Impressão de ameaça avassaladora
No caso da “vaca louca”, por exemplo, a carne bovina era o agente direto da contaminação. No episódio atual, todas as autoridades de saúde concordam que a carne suína não é, nem nunca foi, o elemento transmissor da gripe A.
E é por isso, e não por um arbítrio ou uma motivação gratuita, que a OMS passou a condenar o uso do nome “gripe suína”. E é também por isso que é injustificável que a carne suína seja vítima de um massacre midiático punitivo, injusto e de dimensões inéditas. Um movimento claramente fincado no campo do marketing negativo, no qual não se consegue perceber nem a propriedade jornalística, nem o benefício auferido pela população.
O fato é que a OMS voltou atrás; o Ministério da Saúde voltou atrás; a CNN, o Wall Street Journal, a TF1, o La Reppublica, o Corriere della Sera, e o El País voltaram atrás. Mas, boa parte da mídia, especialmente a brasileira, não. Isto mesmo diante da explicação de que as influenzas são sempre um mix de vírus e, no caso da A (H1N1) com origem tripartite: suína, aviária e humana. Será que não é importante discutir apropriada e profundamente este assunto?
A escolha infeliz do nome veio junto com a maior cobertura sistemática sobre um assunto, on line e ao vivo, por todos os meios, registrada nas últimas décadas. Fica a impressão clara para a população de que a gripe A é uma avassaladora ameaça à sociedade.
Caminhando e aprendendo
A doença é real… Seus malefícios são inegáveis… O Estado tem a obrigação de proteger a população… A mídia tem obrigação de informar. Mas, isto posto, analisemos os fatos sob a ótica da edição…
Difícil tratar do assunto “morte”, já que todas as vidas são importantes. Mas um editor não escapa de comparações. Nesta linha, se não fosse trágico, jogar o mosquito da dengue no ostracismo seria uma injustiça. Logo ele que, somente no Rio de Janeiro, respondeu pela notificação de 259.392 casos da doença em 2008, com 240 mortes confirmadas e 50 sob investigação. E que dizer da tuberculose, que em 2007 registrou 72 mil novos casos no Brasil, uma média nacional de 38,2 ocorrências por 100 mil habitantes?
O fato é que, até esta data (31/07), a quantidade de brasileiros vitimados pela “gripe A” em todo o Brasil, desde o início do problema, ainda é similar ao número de baianos mortos em consequência da dengue (59) apenas no mês de abril. E o inverno está prestes a terminar… E a dengue está prestes a começar a matar novamente…
O que há de realmente novo com esta doença é o ambiente tecnológico de informação através do qual ela está sendo apresentada à sociedade, eivado de sinergia interativa e potencializado pela falta de experiência do poder público (internacional e nacional) e dos próprios profissionais de imprensa no trato com a nova e complexa realidade. Estamos caminhando e aprendendo. A OMS desistiu dos boletins diários sobre a gripe A e o Ministério da Saúde idem, apesar do protesto de alguns colegas que, curiosamente, enxergam aí uma manobra do governo para sonegar informação.
Quadro clínico leve
Cabe refletir: o que aconteceria se o governo fizesse boletins diários também sobre a malária? Só em 2007, foram registrados 457.659 novos casos da doença, com 59 óbitos, ou 3,93 vezes mais do que a gripe A, até agora. Caberia a pergunta: seria o caso de limitar as viagens à Amazônia? E o Nordeste, onde nenhum dos estados alcançou a meta pactuada de unificação de indicadores do Ministério, em 2007, no que concerne à perigosa leishmaniose?
Será que imprensa questionou suficientemente quais foram as reais motivações de Yurgen Schlundt, diretor de Segurança Alimentar da OMS, que sustentou o nome “gripe suína” durante dez dias alegando que os pedidos no sentido contrário estavam sendo feitos por produtores, como se estes fossem verdadeiros facínoras, mero grupo de lobby desapegado do interesse social? Quando a OMS voltou atrás, o nome já está consolidado na mídia mundial e nós mesmos sabemos o quanto é difícil para um veículo retroceder depois de criado um verdadeiro ícone de comunicação entre ele e seu público. Importante: o nome foi chancelado e cristalizado a partir de notas oficiais de um ente público internacional, depois obrigado pelos fatos a recuar, sem que a mídia questionasse esse processo.
Schlundt foi inexplicavelmente além. Soltou uma nota recomendando que não fossem comidos “animais suínos mortos naturalmente”. Ora, há várias décadas os organismos de controle sanitário recomendam o mesmo, em qualquer circunstância, para qualquer animal. No contexto, parecia que uma ponte direta tinha sido construída entre a carne e o vírus. Não era verdade. Por ordem da direção geral da OMS, Yurgen Schlundt teve que retirar a nota por insuficiência técnica. O assunto foi marginalmente tratado e explicado pelas diversas mídias.
Esta gripe é uma doença particularmente ameaçadora? Apresenta taxa de mortalidade diferenciada? A ciência não tem como controlá-la? Se acreditarmos no que diz a OMS e no que está publicado na página de orientação do site do Ministério da Saúde, a resposta para estas perguntas é “não”: “É importante frisar que, na gripe comum, a maioria dos casos apresenta quadro clínico leve e quase 100% evoluem para a cura. Isso também ocorre na nova gripe. Em ambos os casos, o total de pessoas que morrem após contraírem o vírus em todo o mundo é, em média, de 0,5%.”
“Sucesso” por seus próprios “méritos”?
Ou seja:
a) Trata-se de uma gripe com grau de mortalidade semelhante ao da gripe comum;
b) Alastra-se com impressionante velocidade, como a gripe comum;
c) No Brasil, ainda segundo o Ministério da Saúde, parte expressiva dos pacientes que faleceram apresentava quadro anterior de outras doenças;
d) Com o fim do inverno, a “gripe A” tende a refluir, como de resto acontece normalmente com as gripes;
e) A Austrália anunciou que distribuirá uma vacina ainda este ano. Ou seja, os brasileiros atravessarão o próximo inverno bem mais protegidos.
O fato: a tecnologia e os recursos hoje disponíveis minimizaram as conseqüências da pandemia. Os números falam por si. Ou o cachorro mordeu o homem, e não o homem mordeu o cachorro. Há cerca de dez dias, por exemplo, a mídia (rádios e canais da TV fechada) abriu nova e espontaneamente espaço ao vivo – perto de duas horas – para o ministro da Saúde falar sobre a gripe dita suína. Tudo turbinado on line por Twitters, e-mails e Face Books. Atire a primeira pedra o político que resistiria a tal tentação. Mas, deve a mídia abrir este espaço para uma única doença? É jornalisticamente correto? Há razões para isto?
Até que ponto a “gripe A” é um “sucesso” por seus próprios “méritos”, ou por excesso de exposição? O fato inconteste: aqui, a notícia é a notícia. E, com licença do trocadilho, plena de seu significado viral. E cabe a constatação: apesar de pulverizado pela tecnologia, o poder da mídia acabou multiplicado algumas vezes.
O fato social do ano
Uma certeza: a manutenção voluntarista e tecnicamente infundada do uso do nome “gripe suína” promove um massacre midiático de dimensões inéditas. Isto contra um produto, que, segundo todas as autoridades envolvidas, não tem qualquer relação direta com o mal que o nome alardeia. A desinformação contaminada pelo espetáculo (e quantos atores não se aproveitam deste espetáculo?) pode ser devidamente medida. A dengue, que assola o país há anos, encontra 8,4 milhões de registros no Google. A dita “gripe suína”, que estreou em abril, bate 9,3 milhões de resultados.
Resumos da matéria que virou pânico e do pânico que virou matéria: hospitais lotados de gente precipitada, apavorada, a maioria sem apresentar o conjunto dos sinais da doença; um ônibus chileno apedrejado ao entrar na Argentina porque carregava um paciente contaminado com a “gripe A”, em busca de socorro médico; alarmada, a população esgota as máscaras nas farmácias do Rio de Janeiro, as mesmas máscaras que a mesma mídia informa não serem decisivas para evitar a contaminação. E muito mais…
É claro que o combalido sistema de saúde brasileiro não suporta este teste de stress. Os virologistas, preocupados, acrescentam que uma massa assustada de gente não portadora do vírus está indo aos hospitais para… encontrar o vírus…
A quantidade de espaço oferecido ao A/H1N1 e os novos meios tecnológicos estão transformando esta doença no fato social do ano, com repercussões econômicas definidas e inegáveis conseqüências políticas. Eis a questão central.
Riscos à qualidade de informação
Em nenhum momento minimizamos a importância intrínseca do problema. Mas, assistimos à mobilização de recursos do Estado brasileiro em torno de um mal real e contra o qual a sociedade tem que ser protegida, mas que é caracterizadamente menos pernicioso e letal do que um rol considerável de outras doenças que jamais receberam cobertura sequer parecida. É nosso dever de jornalistas nos perguntar o por quê.
O fato de ser um vírus “novo” justifica tudo isto? Aparentemente não, especialmente se compararmos com situações similares e recentes, como a própria “vaca louca”. A verdade é que diante destas considerações nós, jornalistas, temos mais perguntas do que respostas a oferecer neste momento.
O problema de fundo é que numa sociedade onde a informação dobra a cada quatro anos, em que os meios tecnológicos multiplicam seu próprio alcance e potência em tempo muito menor, tudo indica que nós, jornalistas, não estamos conseguindo antecipar essa notícia: como garantir a qualidade da informação no âmbito desta nova realidade?
Usar o argumento do direito de informar (qualquer coisa, a qualquer custo e em grande velocidade) para justificar uma apuração precária, critérios editoriais discutíveis, com dramáticas repercussões sociais e econômicas, este é o “vírus I”, que empresta grandes riscos à qualidade da informação que circula no organismo social brasileiro.
O papel dos jornalistas
Do outro lado desta história existe gente real, em carne e osso, que paga impostos e trabalha sem direito a fim de semana. Uma comunidade de cerca de um milhão de brasileiros, distribuídos na produção, no processamento e na comercialização de carne suína, que faz do Brasil o quarto maior produtor e exportador mundial. Atenção: aqui estamos falando da carne mais consumida no mundo, com 39,9% do total, segundo a FAO, e uma média per capita na Europa de 45 kg/ano, contra 13 kg no Brasil, onde prevalece um renitente preconceito.
Urge debater o impacto da nova realidade tecnológica sobre a qualidade da informação. Antes que os oportunistas de sempre surjam com idéias do tipo criação de “Conselhos de Comunicação”. O criterioso professor Luiz Martins, do Departamento de Comunicação da UnB, questiona: “Será que estamos diante de um pânico irracional similar ao provocado pela Guerra dos Mundos que tomou conta dos EUA, em 1938, quando Orson Welles fez o seu histórico programa de rádio?”
O certo é que “agora, cada computador é um jornal”, atesta Jack Discroll, parceiro de Henry Jenkins no MIT e fundador do Centro para o Futuro da Mídia Cívica. Em outras palavras: se não corrermos com este debate, não vamos conseguir contar os mortos pelo caminho.
A democratização da informação é um bem conquistado pela humanidade. E talvez nem mesmo Marshall MacLuhan acreditasse que sua famosa frase se transformaria numa verdade tão brutal e literal. Nesta nova fronteira, o papel dos jornalistas é lutar pela preservação da qualidade da informação, onde se destaca, como patrimônio básico, a clareza e a identificação de sua origem. Cabe aos profissionais de imprensa aprender a usar as novas tecnologias para ajudar a construir o futuro, mas sem deixar de preservar valores forjados num tempo onde o tempo não era ainda a essência das coisas.
Este artigo foi originalmente publicado no sítio “Observatório da Imprensa”.