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A vigília contra a fome - por José Graziano da Silva

Sob o domínio da globalização financeira, uma seca que afete um produto em um único país pode desestabilizar os preços dos alimentos em todo o planeta.

A vigília contra a fome - por José Graziano da Silva

O significado da palavra transição não pode ser subestimado quando se analisa a convalescença da maior crise vivida pela economia mundial nos últimos 80 anos.

A queda expressiva verificada nas cotações agrícolas, um recuo de 20% no Índice de Preços de Alimentos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Alimentação (FAO), em relação a agosto de 2012, é um pedaço dessa travessia.

Persistente há cinco meses, o recuo favorece os consumidores e não necessariamente penaliza os produtores. Na média, os índices resistem acima das margens de remuneração das últimas décadas.

A fotografia tirada no meio do caminho não expressa necessariamente o rosto do futuro. Ninguém pode prever com exatidão o desfecho de uma travessia feita de baixa cotação das commodities, aperto de liquidez e restrição ao crescimento potencial das nações em desenvolvimento.

A natureza pró-cíclica dos mercados financeiros age, ademais, para reforçar a espiral descendente, assim como em 2007/2008 operou no sentido inverso, quando a demanda adicional do etanol americano sobre a principal safra de milho do mundo teve seu impacto altista exacerbado pelas apostas em índices e contratos futuros.

O efeito contagioso do tsunami especulativo – em fuga dos mercados convencionais – afetou então de forma indiscriminada as cotações de alimentos em todo o planeta. As consequências foram exponencialmente superiores ao calibre da motivação original. E essa é uma característica da ‘financeirização’ das crises no mercado globalizado.

Hoje o quadro é diverso, mas o agravante financeiro persiste, embora com sinal inverso. Enquanto os fluxos das apostas se voltam para os juros de longo prazo nos EUA, o mundo se prepara para colher uma safra de grãos 8% superior a de 2012. No Brasil, por exemplo, a previsão de uma colheita 15,5% maior já provoca um recuo dos preços no atacado.

Praticamente concluída, a safra americana de milho irradia igual efeito ao devolver o que a seca retirou do mercado em 2012, quando o Meio-Oeste teve a pior colheita em 50 anos. Desta vez a produção foi recorde com alta de 27% sobre 2012, chegando perto de 350 milhões de toneladas de milho. O efeito dessa alavanca na oferta mundial é previsível.
 

A recomposição dos estoques de passagem, que atingiram o menor nível da história em 2012, é uma delas. A perspectiva é de que fechem 2013 no nível mais alto em uma década, 23% superiores aos do ano passado. A convergência de boas notícias traz alívio depois de um ano difícil. Mas não deve alimentar ilusões.

O mercado agrícola permanece volátil e, como recomendaram os líderes do G-20, na sua reunião de São Petersburgo em setembro deste ano, ainda precisa de uma vigilância estreita e permanente.

A prontidão já mostrou sua eficácia. No ano passado, quando a seca do Meio Oeste americano atiçou a espiral especulativa, o Sistema de Monitoramento de Preços Agrícolas entrou em ação.

Criado em 2011 pelo G-20, esse sistema conta com um secretariado multi-agência liderado pela FAO e tem como objetivo dar maior transparência às condições reais dos mercados, dimensionar estoques e oferecer um espaço de coordenação entre os principais compradores e vendedores de cereais para evitar reações intempestivas e unilaterais, que levam ao pânico. Funcionou bem em 2012: em setembro do ano passado as cotações voltariam aos trilhos da estabilidade – e, agora, de queda.

A lição desse episódio é clara: sob o domínio da globalização financeira, uma seca que afete um produto em um único país pode desestabilizar os preços dos alimentos em todo o planeta. A coordenação política da segurança alimentar é a única força capaz de subtrair espaços à incerteza econômica e climática exacerbada pela transição em curso da crise mundial.

Esse foi o espírito predominante no encontro de ministros de agricultura de quase 40 países, realizado esse mês, na sede da FAO, em Roma.

Reforçar a governança mundial, criar estoques para garantir a segurança alimentar, incentivar o plantio, promover um salto na produtividade da agricultura familiar e fortalecer as redes de proteção social estão entre as ferramentas que podem gerar maior estabilidade e novos avanços na luta contra a fome.

A globalização financeira continuará a exercer sua devastadora capacidade de irradiar crises e potencializar os efeitos de uma safra mal sucedida em qualquer ponto do planeta.

Construir o contrapeso a esse carrossel desordenado é o grande desafio das agências internacionais. Por isso, em paralelo à reunião ministerial de outubro, a FAO também abrigou a sessão do Comitê Mundial de Segurança Alimentar. Trata-se de um fórum único para debater a segurança alimentar e reúne diferentes atores: governos, setor privado, sociedade civil e movimentos sociais. É o principal amálgama de representação política do mutirão contra a fome no mundo nesse momento.

A natureza plural de sua composição permite-lhe exercer o papel indutor dos grandes consensos indispensáveis à construção de um contraponto de segurança alimentar à volatilidade do nosso tempo.

A FAO é uma das caixas de ressonância desse esforço, que contempla, de um lado, o monitoramento dos preços dos alimentos e, de outro, o apoio à organização dos que sofrem as piores consequências das irrupções altistas das cotações.

Não se trata de uma fórmula aritmética. Trata-se de um longo e incontornável empenho em erguer linhas de passagem contra a incerteza e a injustiça, até universalizar as políticas públicas indispensáveis à erradicação da fome em nosso tempo.

José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)