Fonte CEPEA

Carregando cotações...

Ver cotações

Bem-Estar Animal

Abate humanitário

<p>Força-tarefa internacional visita 700 frigoríficos do País para ensinar técnicas de abate e ajudar a elevar exportações. Alvo principal é o mercado europeu.</p>

Tão logo põe a cabeça para fora do túnel escuro e apertado que o conduz rumo ao amplo salão iluminado, o jovem adulto S., de cinco meses, encara seu destino. Tem só cinco segundos antes que dois eletrodos despejem em seu cérebro 1,3 ampère de eletricidade. Ele ficará inconsciente. O tempo é curto, mas S. pode ver, logo abaixo, uma esteira rolante que leva os corpos de seis outros adultos, jovens como ele. Da altura do coração de cada um, verte um grosso jorro de sangue. S. é o próximo da fila.

A massa de ruídos supera os 110 decibéis. São gritos dos animais que estão atrás na fila, barulhos de grossas correntes metálicas movimentando-se em carrossel, de jatos de fogo subindo, de máquinas a pleno vapor.

Quando o corpo rosado de S., aproximados 115 kg, pernas dianteiras esticadas -resultado da contração muscular provocada pela corrente elétrica-, desaba na esteira rolante, encontra o operador de sangria. O homem de olhos azuis, todo de branco como um cirurgião, empunha faca afiadíssima. Um golpe e todos os vasos do coração estão seccionados. Leva um segundo.  O suíno ainda pedala -é o chamado movimento clônico. Não grita mais. Pupilas dilatadas, S. olha para o nada.

O instrutor José Rodolfo Panin Ciocca toca na córnea do animal. Ele não reage. “Está insensibilizado, estão vendo?”, diz Ciocca, que é zootecnista, a uma plateia atenta de 20 homens e mulheres. Para se certificar, aperta o focinho em forma de tomada e dá beliscões na orelha -sem resposta do corpo que sangra.

Todos os dias, o frigorífico Aurora, em Chapecó, no oeste catarinense, abate 4.500 suínos, que, em poucas horas, se transformam em quilômetros de linguiças e salsichas, toneladas de fatias de bacon, presuntos, mortadelas, costelas defumadas, pertences de feijoada -384 toneladas diárias de produtos industrializados. E carcaças inteiras, voltadas principalmente para a exportação.

O rico mercado europeu é o alvo mais cobiçado. O Brasil nunca foi habilitado para vender carne para a Comunidade Europeia. Ora o argumento era a sanidade da carne. Ora, o preço. Ora, o jeito como os animais são tratados.

Mas isso pode mudar. No dia 20 de outubro, chega a Santa Catarina uma equipe de auditores europeus. Objetivo: avaliar como é produzida a carne suína por aqui e, quem sabe, dar ao País o diploma nunca antes alcançado: exportador para a Europa. O frigorífico Aurora, que representará toda a suinocultura brasileira, precisa chegar ao tal “Dia D” dominando toda a teoria e a prática exigidas pelos examinadores.

O instrutor José Rodolfo Panin Ciocca, de que se falou acima, trabalha para a Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla inglesa), ONG de 28 anos e presente em 156 países. Desde o início do mês, uma força-tarefa de veterinários e zootecnistas especialistas em bem-estar animal a soldo da WSPA (entre os quais Ciocca) está dentro das fábricas.

A proverbial desconfiança que sempre existiu entre as entidades de proteção e a indústria de proteína animal rompeu-se graças a um convênio firmado há um ano entre a entidade e o Ministério da Agricultura. Com o aval do ministério e o interesse nos mercados externos, ficou mais fácil para a WSPA entrar em territórios antes vetados, como eram os abatedouros e os frigoríficos.

“Todos os anos o Brasil abate 40 milhões de bovinos, 30 milhões de suínos e de 4 a 5 bilhões de frangos. São números gigantescos, que poderão ser duplicados, triplicados ou quadruplicados em pouco tempo. E isso só depende de conquistarmos novos mercados. Porque tecnologia para produzir nós já temos. Mão de obra, terra e água também”, diz o veterinário Nelmon Oliveira da Costa, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura.

“Na virada do século 19 para o 20, firmaram-se os padrões quanto à qualidade sanitária da carne. Depois, vieram os requisitos quanto à qualidade organoléptica [cor, sabor, odor, textura]. Agora é a vez da valorização da qualidade ética da carne, que inclui o bem-estar dos animais, desde a criação até o abate, além da sustentabilidade ambiental”, diz Eliana Renuncio Bodanese, 38, assessora técnica corporativa da cooperativa Aurora. “Não está escrito em lugar nenhum que um animal tenha de sofrer para morrer”, afirma ela.

Até o fim do mês que vem, 60 trabalhadores líderes de equipes da Aurora, dos abatedouros de suínos e de aves, receberão treinamento da WSPA. Depois, eles retransmitirão essas práticas a seus subordinados. No total, 700 frigoríficos de Santa Catarina, do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo receberão a equipe da WSPA para treinamento.

A veterinária Charli Ludtke, 33, coordenadora do projeto de abate humanitário pela WSPA, já escutou um sem-número de vezes a pergunta: “Para que dar bem-estar ao animal que vai morrer?”. “Sempre respondo: “Se você soubesse que vai morrer hoje, você preferiria morrer sob tortura, agonizando, ou calmamente, sem dor?”. A obviedade da resposta é o que nos anima a prosseguir”.

É preciso “dar qualidade de vida” ao animal

A veterinária Charli Ludtke, da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA), é o que se chama de “bem-estarista”. Pelo bem-estar dos animais, ela se alia aos produtores de boa vontade, aos frigoríficos e aos governos. Até ao McDonald´s, alvo de ataques permanentes de outras entidades de defesa dos bichos: “O McDonald´s tem auditores que examinam frigoríficos brasileiros para o bem-estar animal”.

Segundo ela, no McDonald´s europeu, o consumidor recebe um folheto dizendo de onde vem a carne. “Houve uma diminuição do consumo, e eles acabaram se adequando. Hoje, servem de exemplo”.

Ludtke defende que exista um selo de bem-estar animal. “Tem de haver esse nicho de produto porque, se eu sou um consumidor consciente e quero continuar consumindo carne, pelo menos que eu saiba a origem dessa carne, se esse animal foi manejado corretamente”.

Para a veterinária, o animal pode servir ao homem, desde que se dê qualidade de vida a ele. “Eles não podem ser vistos apenas como uma máquina de produzir alimento”, disse. “Nossa missão é intervir na realidade. E a realidade é que o abate não acabará amanhã. Há projeções que mostram que a tendência, ao contrário, é de aumento do consumo. Que seja, pelo menos, com redução de sofrimento e dor”.